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7 de abr. de 2017

A Culpa

Nesta semana, passei por três situações "corriqueiras" (no sentido que elas se repetem diariamente):
  1. Durante uma reunião de negócios, um amigo meu disse que dentre várias coisas, o "feminismo é responsável por deixar o mundo meio do jeito que tá aí: confuso, quebrado e cheio de confusão";
  2. Recebi via WhatsApp um vazamento de uma moça, muito bela por sinal. Junto, vinha o post que ela fez na página pessoal do Facebook dela justificando o ato, além de vários outros dados pessoais;
  3. Durante uma aula na faculdade, um professor foi infeliz em dizer que "as mulheres têm culpa em certos comportamentos machistas se perpetuarem dentro de casa" (ok, isso não é lá tão mentira assim, mas o problema é que o enfoque e o tom de culpa introjetada dele foi um prato cheio para qualquer um que deseje qualquer coisa para atacar o feminismo).
De todos estes pontos, só ficou uma certeza:
Em todas elas, eu foi um covarde e me calei. Em nenhum momento eu retruquei, questionei, indaguei, porra nenhuma.
E enquanto isso, nesta mesma semana, uma idosa de 73 anos foi estuprada, um ator global se envolve em uma polêmica de assédio (e gera comentários terríveis de outros atores que tentam "minimizar" o ato) e um famoso cantor também foi pego por câmeras de vigilância mostrando que agrediu a mulher.

Independentemente do grau, fica claro uma coisa:
Meu silêncio mata, agride e lesa tanto quanto aquele que executa na prática.

***

Texto recomendado: toda relação homem-mulher é assimétrica.

4 de nov. de 2016

Guerreiros

Todo dia cedo, quando estou indo para o trabalho, um cidadão me vê perto da rodoviária por onde eu passo e me dá um bom dia.

"Bom dia guerreiro!". É o que ele sempre me diz.

Ele é uma pessoa humilde, vive na rua, creio eu. Já o vi várias vezes na região desta rodoviária, ou perto do coreto, deitado em papelões e coberto por uma manta fina. Ele trabalha lavando carros, ajudando alguns taxistas daquele ponto, em troca de alguns trocados ou comida.

Uma vez me disseram que ele usa drogas (já o vi em estado alterado algumas vezes), e tem uma ferida feia na perna. Vive pedindo ajuda para poder pagar a troca do curativo desse machucado.

Não pede esmola. Pede ajuda.

Se ele realmente usa o dinheiro para esse fim, não posso dizer que sim. Mas posso dizer com certeza que não sou guerreiro assim. Não é questão de comparação pura e simplesmente: não é simplesmente aceitar que esse rapaz e eu vivemos em realidades distintas.



"Guerreiro".

Quem dera eu ser um guerreiro. Falta-me muita coisa para sequer começar a trilhar o caminho do combatente moderno, para conseguir enfrentar o monstro da realidade cotidiana.

Mas pelo menos, tenho sobrevivido a uma batalha por dia. Por trinta anos, praticamente.

Hora então de buscar uma transição do campo de combate. Mudança de tática.

Boa noite, guerreiros.

21 de out. de 2016

Dicionário (im)Pessoal #5

Noção | s. f.

no·ção

Substantivo feminino
1. Ideia que se tem de uma coisa.
2. Conhecimento, notícia.
3. Conhecimento elementar.
4. Exposição sumária.

Fonte

Definições do Dicionário (im)Pessoal:
1. Saber que mexer com uma mulher na rua, especialmente com uma garota de 14 anos, não é algo legal (sim, eu vi isso hoje: um rapaz que trabalhava em uma obra começou a assoviar para a menina voltando da escola, que tinha mais ou menos essa idade, e chamando-a pra entrar na construção com ele; ele me viu e ficou fazendo cara feia pra mim, mas eu fiquei encarando o cidadão e ele se retirou);
2. Saber onde seu direito termina e onde começa o do outro;
3. Entender que a zoeira não tem limite, mas tem hora, e pode ser uma excelente ferramenta de socialização em muitos casos;
4. Assumir nem que seja minimamente suas responsabilidades, deveres e falhas.

***
O Dicionário (im)Pessoal são conceitos de palavras corriqueiras mas que, ao contrário do livro tradicional, foge à regra por permitir interpretações diferentes por cada um que leia aquele termo. Fica a pergunta: o que a palavra da vez lhe traz de experiências, memórias ou sensações? Comente!

14 de out. de 2016

Memórias [Conto]

— Com trinta centímetros de metal atravessado em suas entranhas, só um idiota ainda acredita na fé.

O guerreiro, caído no vau do rio, escuta uma voz espectral dizer isso. Ignorando a fala, e com as poucas forças que ainda lhe restavam, segurou o terço na sua mão, pois não era pela fé que tal objeto era relevante para ele: um belo crucifixo feito de prata pura feito no melhor ourives da cidade de Elarin. Não, não mesmo.

— Assim como tem sido em toda a História, o método mais efetivo para se estabelecer em uma contenda ainda é pelo derramamento de sangue a mando de poucos que “acham” que sabem de alguma coisa. Coitado... Coitados de vocês, almas ignorantes, que por conta da ilusão da honra, acreditam fazer uma gloriosa batalha contra um inimigo que na verdade também é tão torpe. Pena!

Essa voz... Seria a Morte se fazendo presente neste momento?

Para o inferno com isso. Não faz mais diferença, pois o soldado caído não sente mais medo, apenas frio, e morrer agora é só uma questão de tempo. O som dos corvos revoando, escolhendo qual dos corpos seria o mais apetitoso, e dos outros já se banqueteando das vísceras dos derrotados, lhe dão uma mórbida paz. A água corrente e gelada passando por dentro da sua armadura era pacificadora, pois levava embora em tom rubro seu sangue sujo e culpado de outras mortes cujas quais fora o executor. Era este o fim: morrer em batalha buscando conquistar os campos férteis daquela região. Que original...

— Entendi porque concentra suas poucas forças neste objeto, homem — a voz calma e macabra corta os pensamentos do combatente moribundo. — Não é o objeto, é quem lhe deu de presente. São memórias. Você lutou e chegou até aqui não por ideal, mas para fazer jus a algumas memórias. Tolo... Tolo! Não por desejar fazer com que essas lembranças sobrevivam, mas por se apegar a elas dentro de um campo de guerra. Você vai morrer... Sim, e logo... Mas por mais que tenha lutado com bravura, não será sobre você que os menestréis cantarão. Quem lhe deu o presente nunca saberá que fim aconteceu com você, pois até seus mensageiros foram mortos. Essa pessoa... Essa pessoa também morrerá na dúvida, com amargura infinita por não saber que fim teve seu amado. E seu presente... Presente tão belo, será levado por um corvo para um lugar qualquer e por ali perdido, pois sabe que essas aves gostam de coisas brilhantes, ou saqueado por algum fazendeiro ou carniceiro, derretido e vendido para se tornar um dente, uma presilha de cinto ou o detalhe de uma taça para lábios gordos, justo aqueles que ditam quando uma guerra começa ou termina. Ó fim mais imoral terá!

Her Cold Embrace • TheMichaelMacRae
Finalmente, a visão do soldado começa a ficar mais e mais turva. Ainda tem tempo de sentir um fio quente cruzando seu rosto (seria suor ou uma lágrima?), a última fonte de calor que se lembra desde o fim do combate. As pálpebras ficam pesadas, e o dia vira noite rapidamente. Os sons vão ficando longe, sumindo cada vez mais, e por fim, um balbuciar se esvai através do eco que foge pelas lacunas do pesado elmo:

— Te... a... mo...

16 de set. de 2016

Além do felizes para sempre: quatro motivos pelos quais o casamento não compensa

Quando se está em um relacionamento de médio a longo prazo, não tarda os famosos "vai casar quando?" ou "e ae, já pensando no casório?".

Eu namoro há 8 anos, e é quase uma rotina que as pessoas cheguem para mim e pergunte "quando será o próximo passo do relacionamento". Porra, como se isso fosse definitivamente determinante para que mais 8 anos viessem!

Antes que alguém me questione, até o momento, minha namorada também partilha da mesma opinião de não querer casar. Para explicar melhor isso, uma listinha básica de porque eu acho que, na minha opinião, é uma tolice casar:

1. Eu não sou religioso

Pra quê eu tenho que entrar dentro de um templo cujo qual os valores não são relevantes para mim? Acredito que seria muita hipocrisia da minha parte fazer parte de um ritual cujo qual não partilho a convicção só para agradar os outros. Até porque...

2. É tudo muito caro

"Olhe querida, toda essa maravilha que nunca poderemos ficar porque temos que pagar nossa festa!"

Pense bem: com a grana de um investimento de um casamento, eu poderia viajar com ela para vários locais bacanas, conhecer gente nova, ter experiências bacanas ou, pelo menos, equipar bem minha morada com a minha então esposa.

Uma festa razoável aqui na região fica entre 20 e 50 mil reais, e eu sempre achei que fazer festas de casamento é mais para os convidados do que para os noivos em si. Existe uma carga de simbolismo enorme em cima do casório e justamente por isso...

3. Casar é para mostrar para os outros que você se casou

Eu sempre preferi as coisas um pouco mais simples (embora agora na faculdade de Letras me fizeram questionar o o que seria algo "simples", mas isso fica para outro texto"). Toda aquela pompa, aquela coisa bonita, trajes caros, mídia... bleh.

Sabe do quê preciso do meu lado? Dos melhores amigos que tenho e de alguns parentes que considero, além de claro, da Kaiser latão trincando no freezer, uma piscina, uma alcatra assando numa churrasqueira de menos de meio metro quadrado tocando alguma música cuja qual já não consigo mais entender qualé. Saca?

4. O simbolismo pesa

Algemas de dedos?

Talvez, o mais importante dos motivos que me levam a não assumir um casamento seria o fato do peso que o termo possui. Casamento em geral é como se fosse uma nova etapa de vida, avanço, a chegada de uma responsabilidade social que cedo ou tarde viria. Há aqueles que atribuem ao casamento uma possível mudança de vida por parte de um (ou ambos)!

Não concordo. Acho que até por conta disso que muito relacionamento por aí afunda: o excesso da responsabilidade, a cobrança que se tem em cima do termo "casado". Não poderia ser simplesmente duas pessoas que estão juntas de comum acordo? Não poderíamos deixá-las livres dessa cobrança para que o relacionamento possa fluir sem um termo a menos?

***

Enfim, breves motivos, dentre vários outros que ainda poderia discutir aqui, de como eu vejo na minha vida um casamento como parte desnecessária. Naturalmente, esta é uma opinião minha, Mas e você leitor, o que acha?

6 de ago. de 2016

Dicionário (im)Pessoal #4

Orgulho | s. m.

or·gu·lho 
(1ª pess. sing. pres. ind. de orgulhar)

Substantivo masculino
1. Manifestação do alto apreço ou conceito em que alguém se tem.
2. Soberba ridícula.
3. Brio.

Fonte da imagem

Definições do Dicionário (im)Pessoal:
1. Sentimento até certo ponto necessário e benéfico, mas facilmente torna-se corruptível e tóxico, corroendo relações e exacerbando propriedades inúteis;
2. Ego exagerado, facilmente ligado à ignorância, rancor e falsidade;
3. Incapacidade de se admitir com um defeito (que geralmente todos já sabem que se tem).
4. Ironicamente, falta de confiança em si próprio.

***
O Dicionário (im)Pessoal são conceitos de palavras corriqueiras mas que, ao contrário do livro tradicional, foge à regra por permitir interpretações diferentes por cada um que leia aquele termo. Fica a pergunta: o que a palavra da vez lhe traz de experiências, memórias ou sensações? Comente!

29 de jul. de 2016

Pensamentos Cotidianos

Estava em um bar hoje com alguns amigos quando uma mulher, em seus 30 anos mais ou menos, apareceu. Bonita e com um corpo dentro dos padrões "socialmente desejáveis", digamos assim. Mas ao invés de contemplá-la, em um estalo, mudei meu foco para reparar como o ambiente à sua volta reagiria com a presença dela.

Exceto por algumas atendentes, todos os presentes no local eram homens, com no mínimo também por volta de 30 anos, alguns uniformizados e indo/vindo do trabalho. Todos começaram a encará-la e reparar insistentemente nos dotes físicos da moça; eu notei isso e também vi que ela, apesar de se claramente notar os olhares todos recaírem sobre si, evitou qualquer tipo de contato visual, limitando-se apenas a interagir com os funcionários. Quando seu pedido chegou, ela o recolheu e foi embora.

Fiquei me perguntando, como em um exercício de empatia, quantos olhares, cantadas e outras banalidades deve ouvir todo dia. Não, não estava com "roupas provocantes" (o que também não dá direito de julgar ninguém), nem qualquer tipo de comportamento "provocativo".

Pensei na minha irmã, na minha mãe. Pensei na minha namorada e amigas,

Pensei sobre mim e minha postura para com algumas pessoas.

***

Momentos depois, um dos rapazes que estavam comigo à mesa disse:
"Namorar alguém tem que ser no máximo por dois anos; mais que isso enjoa e não compensa."
Estou em um relacionamento que vai fazer oito anos. Estou em um loop de enjoo eterno, então? Se eu me cansar, basta descartar? É mais fácil então adquirir uma coisa duvidosa mas nova do que consertar uma velha mas correta?

Novamente pensei, mas desta vez, sobre o comportamento das pessoas sobre ou para mim.

14 de jul. de 2016

O encontro

O garoto estava ainda atordoado, ajoelhado, de frente à lápide do finado parente, olhava diretamente para o que estava escrito: o nome, data de nascimento e falecimento e a foto em preto e branco daquele homem que chegara ao fim de seus anos. Claramente o rapaz não aceitava a morte de tal senhor: de alguma forma, e somente agora, ele se deu conta de quão absoluto é o fim de algo que se ama.

Todos que foram ao enterro já tinham ido embora; haviam muitos rostos conhecidos, e outros nem tanto, e aqueles nada reconhecíveis. O entardecer trazia junto da sombra um vento frio, mostrando que o inverno ainda não terminara.

Por que ainda choras, rapaz? — uma voz estranha, quase cadavérica, surgiu próximo do garoto. Assustado, ele olha e vê um cidadão de meia-idade, trajando roupas finas, embora um pouco fora de moda, talvez. Tinha barba muito bem feita e cavanhaque pontudo, um bigote peculiar, cabelo e olhos negros feito carvão e um ar de ironia. O homem toca de leve o ombro do rapaz.

Cemetery Sundown
O garoto estranha um pouco: era impossível este homem ter chegado ali sem que ele visse, já que o túmulo fica em cima de uma colina, e o único caminho disponível era aquele cujo qual o rapaz estava de frente. Voltando a si, o ele comenta para o exótico homem:

— Porque perdi um parente muito querido. Todos ficam tristes quando perdem algo que gostam muito.

Ora, isso não ser novidade para ninguém — fala pacificamente o estranho, enquanto massageia os pelos do cavanhaque. — No entanto, sabes que a morte ser inevitável, então por que insistes em chorar?

O garoto fica maus confuso ainda, Quem diabos é esse cara que acaba de chegar e fica com esse papo agora? Não saberia ele respeitar o momento de dor alheia?

— Olha meu senhor, lidar com perdas é muito complicado. Estou em um momento difícil, e o senhor parece querer caçoar de mim... Respeite minha dor, por favor.

— Meu rapaz, não precisar ficar assim. Apenas acho engraçado vocês, que comemoram o nascer das coisas e se entristecem com desfazer delas, como se fossem absolutas. Tudo vem e vai. Não ser nada separado uma da outra; ambas fazer parte de um longo... processo.

— Quem é o senhor, para vir aqui me dizer isto? Conhecia meu parente?

O garoto estranha muito a fala do senhorio. É um pouco confusa, errada, com graves erros de concordância, mas passa uma firmeza sem igual. O estranho homem olha diretamente nos olhos do rapaz, solta um leve sorriso de canto de rosto e diz:

Eu conhecer seu parente, você, os que já se foram e os que virão, jovem. Eu vir aqui lembrar você de aproveitar o tempo que lhe resta, igualando o que se foi com que ainda fica. Vós perdestes muito de sua energia dedicando a coisas ruins e lembrar de coisas que já se foram, que não há nada mais o que fazer... Memórias ser coisas boas, mas podem lhe atrasar, ofuscar os olhos em virtude de tudo que a vida proporciona graças a uma finada sensação que tu insistes em ressuscitar. 

Lauren Hill Cemetery
"Lembre-se: você está aqui para viver. Para experimentar, arriscar, chorar, divertir, mas no fim, viver. O que há na morte é outra história, morra e descubra. Até chegar sua hora, ame, odeie, comece, termine, respire, inspire, brinque... Pois, pense: hoje subiste este morro para chegar até aqui, e haverá o dia cujo qual você nem de longe isso conseguirá, e depois desse dia, outro dia cujo qual será aqui repousado por muitas ou poucas pessoas. Você tens medo de roubar aquele beijo, pedir teu aumento no trabalho, de puxar papo com a rapariga... Pois não deveria, sabes? No fim, e apenas no fim, descobrirás que muito do que fizeste foi perda de tempo, e um outro punhado de coisas que deixastes para trás por medo de fazê-las lhe será tomado como um vazio. Vivas, meu rapaz, vivas. A cada aniversário, a cada ano, mais e mais estarei perto de ti e de surpresa tomarei o que é meu."

Assustado, o garoto olha para o túmulo do parente finado. Ao voltar o olhar, não vê mais ninguém. Teria sonhado? Não... Claramente não. Era real: o toque, a fala errada, o cheiro do tal homem... Não foi um alerta, e sim um conselho; e por mais misterioso que fora o encontro, o rapaz nãos sente medo.

Ele se levanta, limpa seus joelhos e desce pelo caminho entre covas abertas, jazigos e túmulos. A noite quase que chegara completamente. Mas pensando, na verdade, o raiar de tudo apenas começara a despontar.

25 de mar. de 2016

Remédios

Enquanto ia para o trabalho essa semana, vi duas pessoas de idade, ambos com aparentemente setenta anos, um homem e uma mulher, conversando sobre saúde e remédios. Aparentemente já eram conhecidos de longa data (mas não com um relacionamento), e caminhavam com a limitação comum da idade.

Eu passava próximo a eles, e escutei o seguinte diálogo:

— Eu parei de tomar meus remédios — diz o homem.
— Por quê?
— Quanto mais remédio eu tomava, mais fraco eu estava. Tomava um remédio para cuidar de uma coisa, piorava outra. Arrumei um que agora tem me feito bem melhor agora.
— Qual?
— Caipirinha.
— Mas você não estava podendo beber...
— Nem estou podendo mesmo. Mas azar.
— Faz isso não homem. Pode te dar problema aí...
— Ah, azar. Já estou velho demais para ficar dando dinheiro pra esse povo que só quer ver a gente doente e ganhar em cima. Arrumei uma pinguinha aí, uns limões e sal, e mando pra dentro na hora do almoço. Fico bem, relaxado, nem preciso exagerar. Até a dor na perna sarou. Minha filha não gosta, mas eu não estou nem aí, é só um pouquinho por dia. Tenho me sentido realmente bem mais disposto, tanto por pegar e fazer um negócio que muito tempo não tomava quanto pelas lembranças que isso me traz.
— Uai, vou tomar uma co'cê lá...
— Vamos lá, sô. 'Cê vai ver a diferença que é.

E assim fui para o trabalho, com a boca seca para tomar minha caipirinha do dia.

12 de mar. de 2016

Réquiem da dúvida

Cervejas e drinques eficientes,
garçom, alegre e tranquilo.
De mesa a mesa reconhecido,
esforçado era, sempre agradecido,
fala baixa, discreto e muito amigo.

(Porque assim tão próximo de Deus,
no tradicional cartão postal,
forçado deu seu último adeus?)

Mas a desgraça lhe rondava
da morte, não pôde se esconder.
Uma vez lhe tiraram o amor
diferente talvez, mas de valor
intolerância, com sangue a valer.

(Porque morrem tantos bons
se quem continua a viver semeia
dor e tristeza como dons?)

Da vida não se tem mais respeito
Mais uma vítima da covardia
Do ódio tolo, sozinho apanhava
Paus e socos, a vida lhe arrancava
E apesar das dores, ninguém ouvia.

(Porque  fazer sofrer tanto
aquele que de você não precisa
além de respeito e ponto?)

Um corpo frio no chão
depois de uma noite sem lua.
O sorriso não existe mais,
o segredo sombrio se faz,
na noite covarde da rua.


***
Ao mesmo tempo que experimento escrever em estilo de poesia, coisa que eu raríssimas vezes faço (e tomo iniciativa agora em função das aulas da universidade), gostaria de deixar aqui um pequeno registro de alguém que foi covardemente assassinado na madrugada desta sexta (11/03).

Esta poesia é para Adílio, um rapaz negro, gay e membro de religião africana — pessoa que já teve um namorado morto vítima de homofobia —, que foi espancado até a morte, após sair do trabalho e de forma terrivelmente covarde por socos e pauladas, cujo corpo foi encontrado por uma moradora de rua. Estranhamente, ninguém nas redondezas do acontecido ouviu algo suspeito...

Embora não fosse amigo próximo dele, várias vezes fui atendido de forma exemplar pelo próprio no bar onde trabalhava como garçom, no cartão postal aqui de São João del-Rei. Resta-me desejar um descanso confortável, e torcer para que alguma justiça seja feita.

5 de mar. de 2016

Porque um alienígena nunca visitaria nosso planeta

No dia primeiro de março de 2016, dois astronautas retornaram à terra depois de quase um ano no espaço. Ao chegar à Terra com uma nave de transporte soviética, percebeu-se um pequeno áudio nos arquivos de gravação, com uma mensagem decodificada desta forma:

“Olá terráqueos. Vemos em vocês uma imensa curiosidade em saber de nossa existência, se realmente somos criaturas cinzas, baixas e de olhos grandes, se gostamos ou não das mesmas coisas; infelizmente, tão cedo ficarão à sombra da dúvida, pois quase não temos mais interesse em fazer qualquer contato com seu povo. Em suma: não vemos motivos quaisquer para nos revelar e interagir com seu planeta.

Até gostaríamos mesmo de poder unir nossos conhecimentos em um só, e formaríamos uma comunidade intergaláctica avançada em todos os sentidos. Mas, observando-os, chegamos à conclusão que vocês mal gostam do seu chamado Planeta Azul, pois não têm o mínimo de respeito com este lugar que têm como lar. Vocês destroem tudo em prol de uma coisa tão subjetiva que denominam como “dinheiro”, desfazem o equilíbrio natural e se vangloriam disso, matam seu semelhante – mesmo que ele tenha patas em vez de pés – como se fosse apenas mais um. Vocês precisam entender que nada dura para sempre, e mesmo vocês um dia saberão, às duras penas, que trocar o azul de suas águas e o verde das matas pelos tons frios de seus ‘dinheiros’ não terá valido a pena.

Pior: vocês perdem tempo menosprezando suas mulheres, aquelas que fazem o mais nobre trabalho de todos, que é continuar sua espécie. Desdenham de sua luta por direitos igualitários entre si, e as têm como posse e objeto qualquer de desejos temporários. Zombam de suas inconstâncias, e depositam nelas culpas que não tiveram. Tolos.

Vocês preferiram se vender a viver. Entregam suas almas a obrigações enfadonhas, e aguardam como se por um milagre para que o amanhã seja diferente – e nunca é. Claro, porque nem de longe, muitos de vocês não são resultado daquilo que sonham.


Digam-nos: quando foi que pararam para ver a beleza do desabrochar de uma flor após uma chuva? Já tem muito tempo que fecharam os olhos e se deliciaram em ouvir sua música preferida, certo? Cada um de vocês teria certeza em nos responder qual seu maior prazer na vida? Quando foi a última vez que fizeram desenhos estranhos com nuvens em um céu azul? Sabem nos dizer de qual animal gostam mais (nosso preferido são as corujas!)? Possuem inspirações para escrever muito mais, poderiam incentivar a educação do seu povo...

Ficamos tristes quando vemos vocês trocarem suas vidas reais pelas virtuais, como se tivessem um escudo para preservar suas intimidades. Quando são impacientes com pequenas coisas que poderiam aprimorar sua percepção ou aumentar seu contato, como a demora de um ônibus a chegar, as pessoas que tocam músicas que você não goste, vocês perdem uma boa dose de empatia e conhecimento do outro. Ficamos felizes quando discutem calorosamente mas conseguem resolver-se valendo da razão e sem brigas. Quando se questionam “quem é você” em busca de um aperfeiçoamento pessoal, quando fazem coisas loucas tipo pular de paraquedas, quando a essência da liberdade vence e se faz respeitada, quando, dentro do bom senso, vivem como se fosse seu último dia, como se o mundo fosse acabar amanhã.

Enfim, queremos que saibam que não somos prepotentes ou de fato superiores. Apenas temos certeza que muitos dos seus problemas são facilmente resolvidos com um diálogo sensato e organizado. Só isso. Pensem e façam sua parte. Porque infelizmente, para nós aqui, quando poderíamos ter feito tudo isso, não fizemos, e agora pagamos o preço perdendo nosso lugar da mesma forma que vocês estão fazendo com o seu e vagueamos, como parasitas, de um cosmo a outro em busca de esperança, que diminui a cada estrela que cruzamos, a cada planeta deixado para trás.

Não repitam nossos erros.”

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Texto originalmente escrito para a disciplina de Escrita e Criatividade do curso de Letras/UFSJ, cuja premissa tinha como base pegar frases aleatórias e juntá-las de forma conexa.

4 de jan. de 2016

[MICROCONTO] O Homem do Chapéu Negro

Demorou muitas luas, mas finalmente o Homem de Chapéu Negro chegara ao velho moinho. Envolto sob uma noite escura e brumosa no charco lodoso, pútrido e cercado de árvores secas e anormalmente retorcidas, é nítido que nem mesmo a neve ousa tocar o solo daquele lugar: tudo que restou de uma antiga vila agora se resumia somente, e tão somente, na construção decrépita de pedras negras e irregulares que suavam corrupção a olho nu em uma elevação no terreno cuja trilha que leva até a porta de entrada o tempo quase apagou por completo. O cheiro de morte, os corvos curiosos com o visitante, a água podre que formava uma lama pastosa e escura que sujavam quase aos joelhos do caçador, os pedaços de gente apodrecendo junto a tufos de grama e vermes do tamanho de um dedo polegar não deixavam dúvidas que ele alcançou o covil da bruxa.

Mas não era de uma simples feiticeira que o Homem de Chapéu Negro estava atrás: a criatura que ele caçava era asquerosa, grande, embora andasse arqueada e com sua coluna fazendo quase noventa graus. Ela usava um tipo de magia desconhecida, atraindo as pessoas para próximo de seu covil, e uma vez que as alcançasse, arrancava seus olhos e fazia coleção deles, e comia outras partes do corpo. As vítimas preferidas dessas bruxas eram as grávidas e as crianças, e seus ossos virariam cálices e ferramentas de bruxaria espectral.

A única fonte de luz vinha da cintilante tocha mística que o Homem de Chapéu Negro carregava, uma chama que permitia a iluminação mesmo no caso de escuridões de origem profana; era uma lembrança que o fogo da vida existe mesmo naquele cenário horrendo. Pela última vez, ele checa seu rifle, um Bridesburg Model 1861, arma de tiro único mas confiável, precisa e carregada com sua bala de prata especialmente feita para atingir caças que são resistentes a tiros convencionais. Também confere suas Colt’s, munição para as mesmas e suas bombas alquímicas, previamente preparadas para diminuir o poder mágico da profanação prestes a combater.


Sua melhor arma, no entanto, era Aurora, um sabre finamente fabricado e com uma lâmina tão brilhante quanto à luz da lua, tão bem límpida que mal parecia que ela já tinha se sujado como sangue e vísceras de tantas criaturas profanas. Ninguém sabe o porquê da sua espada ser chamada assim, mas não havia também aquele com coragem para perguntar. O Homem do Chapéu Negro não respondia nada que não fosse relacionado a sua próxima caça ou recompensa, e todos tinham medo dele, onde quer que fosse, mesmo se fosse chamado para o pior dos casos.

Tudo perfeito, exceto por um detalhe: embora não carregue a petulância dos caçadores novatos, sua esperança de volta era diminuta. Influência da criatura? Talvez... Mas como caçador, e portador do Chapéu Negro, a esperança é algo que definitivamente não foi feita para ele, e sim para outros que dependem do sucesso da sua caça. É perda de tempo acreditar que ele possa sair vivo de qualquer missão, enfim; caçadores são feitos para isso, e de um jeito ou de outro, morrer pelas garras, presas ou feitiços, considerando ainda uma morte rápida, é o melhor destino que qualquer Homem de Chapéu Negro pode esperar.

Ele beija sua espada com toda a ternura possível, e salta em direção a parte baixa, onde há muito havia o curso de um vívido riacho hoje apenas lembra um fino curso de água fedorenta. Ele vai em direção ao caminho de entrada do velho moinho e quanto mais se aproxima da entrada, mais é possível escutar o estalar da madeira de dentro da construção, o gotejar da infiltração cair como tiques de relógio, assim como suas hélices que como em uma sobrevida tentam se mover.

Será uma longa noite...

27 de nov. de 2015

Dicionário (im)Pessoal #1

Escrever | v. tr. | v. tr. e pron. | v. intr. | v. pron.

es·cre·ver |ê| - Conjugar
verbo transitivo
1. Pôr, dizer ou comunicar por escrito.
2. Encher de letras.
3. Compor, redigir.
4. Ortografar.
(...)
7. Dirigir-se por escrito a alguém.
(...)
8. Representar o pensamento por meio de caracteres de um sistema de escrita.
9. Formar letras.
10. Ser escritor.



Definições do Dicionário (im)Pessoal:
1. Pensar, pensar e pensar sobre o quê redigir no papel ou computador, quase sempre sem sucesso;
2. Indecisão sobre como começar;
3. Vergonha do que escreve, insatisfação, frustração consigo mesmo;
4. Ter mil e uma ideias na cabeça, mas nenhuma capaz de sair dela;
5. Exercer sua criatividade através de um método cujo qual você não domina;
6. Temor em errar feio uma palavra ou expressão, e receber chacota prontamente por isso;
7. Hobby necessário, mas difícil.

***
O Dicionário (im)Pessoal são conceitos de palavras corriqueiras mas que, ao contrário do livro tradicional, foge à regra por permitir interpretações diferentes por cada um que leia aquele termo. Fica a pergunta: o que a palavra da vez lhe traz de experiências, memórias ou sensações? Comente!

5 de dez. de 2014

No lixo

Jonas certamente estava na pior. De todas as brigas que se metera, esta sem dúvida foi a mais grave. Largado na sarjeta perto da sua casa, sentia as costelas doendo e tinha um grave corte na testa, que sangrava até o olho esquerdo lhe tirando toda a visão deste lado.  Tentou por duas ou três vezes se apoiar nas paredes imundas para ficar de pé, e quando finalmente conseguiu, sentiu dores na sua genitália. Não queria se lembrar do que aconteceu, embora invariavelmente recordasse cada frame.

Uma das últimas coisas que ainda poderia chamar de sua - seu próprio corpo -, já não lhe pertencia mais.

Tinha vontade de chorar e não podia. Quem ia acreditar na sua versão? Bem, um ou outro amigo ia dizer para que tomasse uma providência ou procurasse a polícia, mas no fim das contas, terminaria tudo do mesmo jeito. E pior: ao chegar em casa apanharia de novo, ou na melhor das hipóteses, sofreria uma agressão surpresa quando fosse trabalhar ou estudar, quando achasse que já estava se esquecendo de tudo que passara e as coisas voltando aos eixos.

O rapaz tinha medo de tomar uma decisão sobre o que fazer. Na verdade, ele nem se lembra de quando foi a última vez que pudera tomar uma por si só: era sempre julgado, sempre qualificado moralmente pelos mais fúteis motivos. O relacionamento em que estava no momento foi o pior deles nesse ponto, porque não fazia nada, nada mesmo, sem o consentimento do outro lado.

A violência sempre fora uma constante em sua vida. Quando pequeno, era obrigado a se portar de acordo com o que queriam, e cresceu com várias dúvidas sobre si mesmo, sem que tivesse confiança sequer em procurar saná-las. Foi na internet que conseguiu algumas respostas, mas já era meio tarde: viu que amigos e colegas se portavam diferente do jeito dele e às vezes eram até mais livres, embora sofressem também uma carga de repreensão explícita e eram vistos como escandalosos pelas outras pessoas.

Jonas às vezes até tenta lutar contra isso tudo, mas nada dura mais que alguns dias. Até porque tudo que ele sofre não é só dentro de casa: é normalmente menosprezado no trabalho, no trânsito e até quando precisa pegar um metrô ou um ônibus.

As pessoas pensam que violência é dar um tapa na cara, um tiro, assaltar, sei lá. Mas no fim das contas, violência é você deixar de ser si mesmo, certo? Ou então, deixar de contar para aquele carinha que ele lhe deu troco a mais, ou furar uma fila, ou ainda ficar com um produto que chegou em sua casa por engano...

Mas fazer o quê, era um trapo humano, com o orgulho em frangalhos e a humilhação marcada na pele. O resto é resto: é se arrastar até em casa e torcer para que amanhã as dores estejam menos latejantes para poder ir trabalhar amanhã.

A vontade de chorar ainda não passara.


- Demorou, Jonas - ouve-se o som de uma lata de cerveja sendo aberta.

O som da TV quebra o silêncio do local.

- Desculpa meu bem, estive...estive m-me recompondo.
- Será que não foi encontrar alguma colega sua?
- C-claro que não... Você está com meu celular inclusive...
- E quem garante que você não pode fazer nada sem celular?
- M-mas eu juro, não fiz nada... E-estava onde você me... Me deixou agora a pouco.
- Você está horrível. Vá lavar essa cara e se arrumar.
- T-tá bom.
- Você é meu namorado, e deve se portar como tal. O que os outros vão pensar de você se ficarem vendo conversando com outra mulher à noite por aí?
- N-não vão gostar...
- Certamente, e eu menos. Meu bem... Você sabe que eu te amo e me preocupo com você... Às vezes passo dos limites, admito... Mas é para o seu bem.
- Sim, eu sei...
- Pois é. Desculpa por ter agido assim... E ter lhe acertado tão forte.
- T-tudo bem.

O rapaz sobe e vai até o quarto, de olhos marejados. Olhando-se no espelho do banheiro, ele vê seus machucados e entende que é fadado a viver assim. Se sente um lixo total, mas alguma coisa lhe faz ir pra frente. Talvez, Deus...

- É a mulher que eu amo... Eu acho. E como ela mesmo disse, se eu largá-la não vou encontrar mais ninguém...


***
Achou um pouco estranho esse texto? Veja só: de acordo com um estudo que saiu essa semana, 68% dos jovens brasileiros de idade entre 16 e 24 anos acreditam que mulheres não deveriam ir para a cama no primeiro encontro, 76% criticam o fato delas terem vários ficantes, 48% acham errado dela sair sem a companhia do namorado ou ficante, sem contar a grande parcela delas que tiveram de desfazer amizade ou tiveram sua privacidade violada por conta de um namorado ou ficante.

Ou seja: a pesquisa mostra que o jovem brasileiro reconhece que o machismo existe, mas ele pouco ou nada faz para combatê-lo. E pior, se acha no direito de tomar para si a liberdade do outro, mais especificamente, da mulher. Ciúmes? Antes fosse...

E ainda tive que acompanhar nesses dias,
Em pleno 2015.

Não, não sou um militante feminista, nunca fui. Na verdade, na minha opinião, a grande maioria dos movimentos feministas hoje estão completamente descaracterizados, lutando por coisas que mais parecem com caprichos pessoais do que de fato uma busca pela igualdade de gênero e gerando coitadismo. São necessários? Claro, mas gerar incômodo colocando crucifixos na vagina e quebrando imagens sacras por exemplo não ajudam em nada a validar a integridade da causa. Mas isso é assunto para outro post.

Mas sou militante do respeito independente de gênero, orientação sexual ou qualquer coisa que preze a liberdade do outro. Milito pelo direito da minha mãe, minha irmã, minha namorada, minhas amigas, enfim, das meninas e mulheres poderem andar na rua sem terem que temer se serão atacadas verbal ou fisicamente, sem serem julgadas por um short ou vestido ("mas você está pedindo!") ou mal faladas simplesmente por terem gostos diferenciados da maioria.

E não escrevo isso tudo direcionando a homens: também quero que as próprias mulheres que ao mesmo tempo são vítimas e algozes dessas afirmações infelizes, dentre muitas outras, entendam que possam ser livres de dogmas e passem a ser capazes de agir do jeito que melhor lhes convier.

Não adianta descobrirmos a cura da AIDS se a gente julga nossa vizinha solteira porque ela gosta de sair e ficar com vários caras, enquanto quando um homem faz o mesmo ninguém não está nem aí. Também faz pouca diferença irmos ao espaço se a roupa que alguém usa continua definindo o que ela é - mesmo sem conhecer sua usuária. O problema mundial com as drogas me parece peixe pequeno quando uma mulher desperta ojeriza simplesmente por ter uma vida sexual livre.

Tem horas, que sinceramente, acho que a doença do mundo realmente somos nós mesmos.

21 de nov. de 2014

Pecados

Samuel, 27 anos, nasceu em berço de ouro. Filho de pais abastados, teve tudo na vida, menos um pai e uma mãe. Gosta de se mostrar superior, em especial contra aqueles que vêm de família organizada e estruturada, que tem amor e recebem carinho em casa. Estupra constantemente sua empregada, Patrícia, adora cuspir na cara dos outros internos na sua casa e na rua se acha o senhorio dominante. Eu posso.
Recentemente comprou um revólver calibre 38, mas ainda não decidiu em que ordem vai usá-lo: se é em si, nos outros ou nos outros e depois em si.

***

Patrícia, 18, possui o rosto bonito mas mal cuidado, marcado pela constante violência que sofre de Samuel. Calada, precisa trabalhar e sustentar seus dois irmãos mais novos e sua mãe, Dona Nina, viciada. Mora na periferia, precisa pegar três conduções para chegar na casa dos patrões, mas acredita que Deus tem planos melhores para si no futuro. "Ele sabe o que faz".
Tem medo de sair deste emprego ("emprego") e não conseguir nada melhor.
Mal sabe escrever, mas isso não é necessário quando se tem uma pia suja para lavar e uma mansão cheia de coisas que nem sabe para que servem com poeira a tirar.

***

Dona Nina, 46, uma mãe-exemplo de como não ser uma mãe. Viciada, passa o dia inteiro em casa vendo TV e sussurrando a si mesma porque Patrícia é tão mole a ponto de não lhe dar mais dinheiro. Empurra seus dois garotos mais novos a vender balas e "balas", doces e "doces", para Tinho, chefe dos protetores marginais da comunidade onde vive.
Rodeada por um barraco caindo aos pedaços mas com visão privilegiada para o bairro nobre alguns quilômetros a frente, sonha em suas viagens artificiais ser uma dondoca perua com motorista, pêrsonal treinê e tabret.
A realidade lhe enoja, e se um de seus filhos voltar com as mãos vazias para casa é castigo na certa. Mãe é pra isso.

***

Tinho, 22, traficante de quinta que se acha o maioral da comunidade por possuir meia dúzia de moleques armados consigo. Violento, adora repetir a cena de Cidade de Deus, onde um bandido atira na mão (ou no pé, tanto faz) do rapazinho. Xaveca Patrícia e não vê a hora de casar com ela, mas prefere por hora as novinhas do bairro.
Tudo se resolve na bala. Possui um contato, David, na polícia, que já lhe salvou a pele de umas duas ou três operações de busca e apreensão.
Era para ter sido padre, mas Tinho não aguentava as brincadeiras e os estupros pelos outros seminaristas na época. Apanhava muito e morava com a avó, que não tinha como lhe dar atenção. Cada dor que causa ao outro é uma a menos pra si.

***

David, 39. Policial frustrado, um pouco covarde, que prefere atribuir a característica como proteção extra. Possui olhos fundos, uma esposa lhe esperando cada plantão em casa e dois filhos; na verdade um filho e uma"filha"; nasceu Lúcio, mas se tornou Dyanne na adolescência.
Repassa porções de drogas e armas apreendidas para a comunidade de Tinho e de mais algumas outras, esperando que bandido mate bandido. Está com o colesterol alto.
Delata operações policiais a bandidos em troca de grana. As contas de casa não querem saber de onde a grana vem.

***

Dyanne, 14, expulso/a de casa pelo pai ao revelar que era homossexual. A mãe até que tentou ajudar, mas o patriarca foi direto: VIADO AQUI NÃO, PORRA!
Entre programas e usos periódicos de drogas, acabou gostando da coisa. Possui rostinho novo, carne nova, atende muito boyzinho e gente da alta. Cresceu no negócio rápido: a maioria de outras/os garotas/os precisam ficar nas perigosas e escuras esquinas com microsaias e cantadas nojentas, clientes nojentos em carros nojentos.
Um amigo seu que recomendou que fizesse isso. Era assim ou ficar na rua. Sente até saudade de casa, mas admite que é dona/o de sua própria vida agora. Só espera não ficar doente e morrer cedo, isso não.
Parou de estudar cedo.
Pensa em parar com isso, mas por hora é bom demais, sexo e dinheiro todo o tempo. Melhor que ser espancado por um cliente que pelo pai.

***

Luis Carlos, 55, empresário. Dono de uma rede de hotelaria com mais de 40 filiais, é um magnata fantástico considerado nascido para o empreendedorismo. Cheio de si, faz questão ostentar seu brilhantismo ao lado de sua esposa e filho nos mais variados eventos que é convidado. Cobra 30 mil reais para dar palestras em cursos universitários a aspirantes, mas sabe que dali pouquíssimos serão de fato alguma coisa na vida.
Vota em partidos conservadores, é evangélico, vai no culto às quartas e sábados, paga o dízimo, mas secretamente acha os mendigos preguiçosos e nordestinos aproveitadores.
Cheguei aqui por mérito meu. Todo mundo pode ser assim se quiser.
Quintas às noites se encontra em total segredo com Dyanne, sendo totalmente passivo a ela. Gosta de jogar dinheiro na cama onde fazem sexo. Paga os hormônios para a garota e as consultas, mas não quer que ela mude de sexo. Vai em casa somente para almoçar e comer.
Não conversa direito mais com a esposa, que tem caso com outro cara. Foda-se. Separação não compensa, sai caro demais.
É pai de Samuel.

14 de out. de 2014

Morte e Vida Cervejinha

"O gosto da saudade é o mesmo da cerveja", ele fala pra si mesmo naquele muquifo acolhedor que decidiu chamar de lar, por alguns minutos, ao anoitecer de toda sexta.

Olhando para o líquido amarelo dentro do copo americano típico, sente o gélido recipiente molhar a ponta dos seus dedos até algumas gotas escorrerem e caírem como bombardeio na toalha de mesa xadrez que recobre a mobília. Sempre às sextas, uma parte dele morre e vive ali.

Sozinho, cada gole da bebida amarga e dourada lhe traz um amor ganho e outro que perdeu, um sucesso e uma falha, uma música e um silêncio, tudo tão intenso que a sensação chega às vezes a lhe arrepiar os cabelos. O local abafado, as milhares conversas paralelas disputando atenção entre si, o cheiro da comida de boteco e as músicas aleatórias da rádio local,  nada disso de fato interfere no diálogo com seu passado, visível somente dentro daquele copo.

Admita: você quer uma delícia dessa agora!

O saudosismo de tudo arranca-lhe um sorriso bobo do rosto, mas é sincero, desejoso de poder voltar no tempo e arrumar algumas coisas aqui e ali - e deixar outras bagunçadas mesmo. Tudo é um caos, ele não sabe se vai sair bem, então pra que se importar?

A cerveja é sua melhor amiga nessas horas. Não reclama, não questiona, escuta seus desabafos mentais e assiste suas engraçadas expressões físicas como uma plateia atenta que acompanha um espetáculo chique. Pensando bem, ela esteve sempre presente na sua vida: o primeiro porre da sua vida começou com duas latinhas (e não sabe o que foi mais inesquecível: o esporro da sua mãe ou a ressaca no dia seguinte); sua primeira namorada ele conheceu depois de uma intensa "cervejada", várias amizades fez e refez nas mesas de bar regradas a fritas, queijo e bacon. Rodas de truco e a velha discussão Raposa x Galo também sempre estiveram aguadas com a graciosa cervejinha.

Morrer e viver no boteco.

Ou viver e morrer na saudade.

Que diferença faz?

29 de jun. de 2012

A menina da mochila amarela

Todos os dias, quando o sol ainda espreguiçava no horizonte, lá estava ele, na sacada do seu quarto no segundo andar da residência, determinado, apenas esperando. Tinha um olhar quieto, paciente, sem nenhuma carga de pressa: estava aqui apenas para poder observar seu objeto de desejo; mas não uma cobiça ou ambição malévola, mas sim apenas uma admiração cuja qual era incapaz de descrever com palavras. Para ele, algumas palavras eram difíceis demais.

Na frente de sua casa passava uma avenida. Ela era longa e cortada paralelamente pelo sentido de mão e contra-mão por uma passarela feita de paralelepípedos nos mais variados tons de cinza. Essa passagem, era adornada em seu centro por um longo canteiro, coberto de uma bonita grama verdejante e alguns pequenos coqueirinhos, arbustos e pingo d'ouro. Esse caminho era usado pelas pessoas que acordavam cedo para o começo de seu dia e preferiam usar seus próprios pés para produzir alguma coisa: algumas buscavam uma boa saúde com a prática da caminhada, outras estavam indo para o trabalho, ou aquelas que ainda procuravam que destino iam chegar, em dúvida se escolhiam essa ou aquela esquina.

Mas ele, todo santo dia, ficava ali apenas para esperá-la passar. Ela, seu tesouro intocável, seu troféu inalcançável, seu sonho distante e impedido por uma mísera rua asfaltada e com os carros que desafiavam o alvorecer do dia. Tem gente que o achava louco: acordar tão cedo simplesmente para ir para a varanda e olhar para a rua... Mesmo no inverno tão frio como o desse ano...

Mas o que o esquentava era seu coração mesmo era poder vê-la, por poucos segundos, passando em frente à sua casa. Ela, e somente ela, era capaz de deixá-lo feliz, com seu jeito calmo de andar, seu sorriso bonito igual às estrelas que via à noite (ele gostava de ver estrelas com um simples telescópio ganhado de seu falecido pai), e seu olhar cor de mel, tão doce e tão curativo quanto. Isso o restaurava lentamente, isso o fortalecia. Fazia bem.

Ela tinha os cabelos castanhos, longos, que cobriam a parte superior da sua mochila. Era alta, bem mais alta que ele, mas o que importa? Era ainda uma menina, estava no ginasial, mas com certeza tinha um perfeito corpo de mulher. Ele não pensava nisso com luxúria, era inocente demais para isso; apenas gostava de admirar seu amor que caminha, o anjo sem asas, a menina com as bochechas fustigadas pelo frito matinal, o nariz rosado... E as sardas. As sardas! Elas eram discretas, mas como fossem uma pitada de charme, um retoque, um tom.

Os olhos dele brilhavam quando ela passava. Seu coração acelerava. Ele se sentia... vivo. E gostava de adivinhar o que ela levava naquela mochila. Cadernos e livros só? Não... Talvez uma caneta com aquele cheirinho de chiclé... Uma agenda? Cartas?

Cartas.

Dele. Do outro. Com certeza.

Então bateu a sua amiga angústia. Antes doía mais, agora era só um incômodo temporário, já estava acostumado em passar os dias nessa platônica existência. O Outro era o namorado, aquele que a beija, abraça e a esquenta até à escola.

Ele não sentia raiva. Apenas sentia a dor de amar alguém sem saber o que é amar, mas sabia sentir o amor, sem precisar de letras para defini-lo. Queria poder andar, atravessar a rua e chegar antes do Outro, mas era atraiçoado por si mesmo.

E nem pensava em traição... era simples demais para pensar nisso.

***

Os dias foram passando, e foi ficando cada vez mais difícil ir da cama à janela. Mas ele insistia, mesmo que todos na sua casa resmungavam que não podia mais fazer isso. Sua mãe ficava brava com ele, seu padastro dizia que era ele incapaz de entender. E quando ele ia na escola, junto a outros como ele, desenhava, de forma desajeitada mas sincera, uma nuvem negra, triste, que ocupava tudo e só trazia tudo de ruim, enumerando "papai, mamãe, irmão...". Mas só o desenho dela usava as cores mais bonitas do seu estojo, sempre o amarelo.

Ele adotou o amarelo como sua cor preferida.

***

Neste dia, em especial, ele quase não conseguira sair da cama. Os braços estavam fracos, a escuridão no quarto lhe roubava a vida. Mas juntando toda sua força, ele fora com suas pernas circulares à janela novamente.

Lá vinha ela, com sua destacada mochila às costas. Linda, como sempre.

E radiante ele ficou quando viu que ela parou, mesmo do outro lado da rua, na frente da sua casa. Exatamente, na reta da sua sacada. Ele mal conseguira piscar de tão feliz. Não queria perder nada.

Então, como de súbito, ela olhou de volta. Para ele. Para os olhos dele, para o coração, para a alma, para tudo... E sorriu, sincera, com o sol dourando seu cabelo, tornando sua mochila visível das estrelas, tirando a mecha de cabelo do rosto e deixando-o livre e limpo. A visão mais linda que ele poderia ver, a que ele era capaz de ter, e a mais importante que seus olhos doentes poderiam checar.

E então ela olha para o lado e o Outro se aproxima. Como sempre, a abraça e seguem avenida adentro, seguindo pela calçada cravejada de pedras até o seu destino desconhecido.

E ele, feliz como uma criança, se ajeita na cadeira, fecha os olhos e sonha, sorrindo de orelha a orelha com o prêmio que finalmente conseguira receber.

E aos poucos ele cai em um merecido sono, que há muito tempo desejava. Aquele sono libertador, que não despertará nunca mais.