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11 de nov. de 2016

Olha o RPG!

Quem me conhece sabe da importância que o RPG de mesa tem na minha vida. Fiz (e consolidei) muitas amizades dentro da mesa de jogo, e hoje basicamente o jogo não serve só para contar histórias, mas também uma oportunidade de ver alguns amigos e manter contato semanalmente.

Eu não conseguiria definir melhor a sensação do que é jogar RPG do o vídeo a seguir. Identifiquei muito daquilo que me fez cativar por esse estilo exótico de imaginar e contar histórias nele. Vejam!

4 de nov. de 2016

Guerreiros

Todo dia cedo, quando estou indo para o trabalho, um cidadão me vê perto da rodoviária por onde eu passo e me dá um bom dia.

"Bom dia guerreiro!". É o que ele sempre me diz.

Ele é uma pessoa humilde, vive na rua, creio eu. Já o vi várias vezes na região desta rodoviária, ou perto do coreto, deitado em papelões e coberto por uma manta fina. Ele trabalha lavando carros, ajudando alguns taxistas daquele ponto, em troca de alguns trocados ou comida.

Uma vez me disseram que ele usa drogas (já o vi em estado alterado algumas vezes), e tem uma ferida feia na perna. Vive pedindo ajuda para poder pagar a troca do curativo desse machucado.

Não pede esmola. Pede ajuda.

Se ele realmente usa o dinheiro para esse fim, não posso dizer que sim. Mas posso dizer com certeza que não sou guerreiro assim. Não é questão de comparação pura e simplesmente: não é simplesmente aceitar que esse rapaz e eu vivemos em realidades distintas.



"Guerreiro".

Quem dera eu ser um guerreiro. Falta-me muita coisa para sequer começar a trilhar o caminho do combatente moderno, para conseguir enfrentar o monstro da realidade cotidiana.

Mas pelo menos, tenho sobrevivido a uma batalha por dia. Por trinta anos, praticamente.

Hora então de buscar uma transição do campo de combate. Mudança de tática.

Boa noite, guerreiros.

21 de out. de 2016

Dicionário (im)Pessoal #5

Noção | s. f.

no·ção

Substantivo feminino
1. Ideia que se tem de uma coisa.
2. Conhecimento, notícia.
3. Conhecimento elementar.
4. Exposição sumária.

Fonte

Definições do Dicionário (im)Pessoal:
1. Saber que mexer com uma mulher na rua, especialmente com uma garota de 14 anos, não é algo legal (sim, eu vi isso hoje: um rapaz que trabalhava em uma obra começou a assoviar para a menina voltando da escola, que tinha mais ou menos essa idade, e chamando-a pra entrar na construção com ele; ele me viu e ficou fazendo cara feia pra mim, mas eu fiquei encarando o cidadão e ele se retirou);
2. Saber onde seu direito termina e onde começa o do outro;
3. Entender que a zoeira não tem limite, mas tem hora, e pode ser uma excelente ferramenta de socialização em muitos casos;
4. Assumir nem que seja minimamente suas responsabilidades, deveres e falhas.

***
O Dicionário (im)Pessoal são conceitos de palavras corriqueiras mas que, ao contrário do livro tradicional, foge à regra por permitir interpretações diferentes por cada um que leia aquele termo. Fica a pergunta: o que a palavra da vez lhe traz de experiências, memórias ou sensações? Comente!

14 de out. de 2016

Memórias [Conto]

— Com trinta centímetros de metal atravessado em suas entranhas, só um idiota ainda acredita na fé.

O guerreiro, caído no vau do rio, escuta uma voz espectral dizer isso. Ignorando a fala, e com as poucas forças que ainda lhe restavam, segurou o terço na sua mão, pois não era pela fé que tal objeto era relevante para ele: um belo crucifixo feito de prata pura feito no melhor ourives da cidade de Elarin. Não, não mesmo.

— Assim como tem sido em toda a História, o método mais efetivo para se estabelecer em uma contenda ainda é pelo derramamento de sangue a mando de poucos que “acham” que sabem de alguma coisa. Coitado... Coitados de vocês, almas ignorantes, que por conta da ilusão da honra, acreditam fazer uma gloriosa batalha contra um inimigo que na verdade também é tão torpe. Pena!

Essa voz... Seria a Morte se fazendo presente neste momento?

Para o inferno com isso. Não faz mais diferença, pois o soldado caído não sente mais medo, apenas frio, e morrer agora é só uma questão de tempo. O som dos corvos revoando, escolhendo qual dos corpos seria o mais apetitoso, e dos outros já se banqueteando das vísceras dos derrotados, lhe dão uma mórbida paz. A água corrente e gelada passando por dentro da sua armadura era pacificadora, pois levava embora em tom rubro seu sangue sujo e culpado de outras mortes cujas quais fora o executor. Era este o fim: morrer em batalha buscando conquistar os campos férteis daquela região. Que original...

— Entendi porque concentra suas poucas forças neste objeto, homem — a voz calma e macabra corta os pensamentos do combatente moribundo. — Não é o objeto, é quem lhe deu de presente. São memórias. Você lutou e chegou até aqui não por ideal, mas para fazer jus a algumas memórias. Tolo... Tolo! Não por desejar fazer com que essas lembranças sobrevivam, mas por se apegar a elas dentro de um campo de guerra. Você vai morrer... Sim, e logo... Mas por mais que tenha lutado com bravura, não será sobre você que os menestréis cantarão. Quem lhe deu o presente nunca saberá que fim aconteceu com você, pois até seus mensageiros foram mortos. Essa pessoa... Essa pessoa também morrerá na dúvida, com amargura infinita por não saber que fim teve seu amado. E seu presente... Presente tão belo, será levado por um corvo para um lugar qualquer e por ali perdido, pois sabe que essas aves gostam de coisas brilhantes, ou saqueado por algum fazendeiro ou carniceiro, derretido e vendido para se tornar um dente, uma presilha de cinto ou o detalhe de uma taça para lábios gordos, justo aqueles que ditam quando uma guerra começa ou termina. Ó fim mais imoral terá!

Her Cold Embrace • TheMichaelMacRae
Finalmente, a visão do soldado começa a ficar mais e mais turva. Ainda tem tempo de sentir um fio quente cruzando seu rosto (seria suor ou uma lágrima?), a última fonte de calor que se lembra desde o fim do combate. As pálpebras ficam pesadas, e o dia vira noite rapidamente. Os sons vão ficando longe, sumindo cada vez mais, e por fim, um balbuciar se esvai através do eco que foge pelas lacunas do pesado elmo:

— Te... a... mo...

16 de set. de 2016

Além do felizes para sempre: quatro motivos pelos quais o casamento não compensa

Quando se está em um relacionamento de médio a longo prazo, não tarda os famosos "vai casar quando?" ou "e ae, já pensando no casório?".

Eu namoro há 8 anos, e é quase uma rotina que as pessoas cheguem para mim e pergunte "quando será o próximo passo do relacionamento". Porra, como se isso fosse definitivamente determinante para que mais 8 anos viessem!

Antes que alguém me questione, até o momento, minha namorada também partilha da mesma opinião de não querer casar. Para explicar melhor isso, uma listinha básica de porque eu acho que, na minha opinião, é uma tolice casar:

1. Eu não sou religioso

Pra quê eu tenho que entrar dentro de um templo cujo qual os valores não são relevantes para mim? Acredito que seria muita hipocrisia da minha parte fazer parte de um ritual cujo qual não partilho a convicção só para agradar os outros. Até porque...

2. É tudo muito caro

"Olhe querida, toda essa maravilha que nunca poderemos ficar porque temos que pagar nossa festa!"

Pense bem: com a grana de um investimento de um casamento, eu poderia viajar com ela para vários locais bacanas, conhecer gente nova, ter experiências bacanas ou, pelo menos, equipar bem minha morada com a minha então esposa.

Uma festa razoável aqui na região fica entre 20 e 50 mil reais, e eu sempre achei que fazer festas de casamento é mais para os convidados do que para os noivos em si. Existe uma carga de simbolismo enorme em cima do casório e justamente por isso...

3. Casar é para mostrar para os outros que você se casou

Eu sempre preferi as coisas um pouco mais simples (embora agora na faculdade de Letras me fizeram questionar o o que seria algo "simples", mas isso fica para outro texto"). Toda aquela pompa, aquela coisa bonita, trajes caros, mídia... bleh.

Sabe do quê preciso do meu lado? Dos melhores amigos que tenho e de alguns parentes que considero, além de claro, da Kaiser latão trincando no freezer, uma piscina, uma alcatra assando numa churrasqueira de menos de meio metro quadrado tocando alguma música cuja qual já não consigo mais entender qualé. Saca?

4. O simbolismo pesa

Algemas de dedos?

Talvez, o mais importante dos motivos que me levam a não assumir um casamento seria o fato do peso que o termo possui. Casamento em geral é como se fosse uma nova etapa de vida, avanço, a chegada de uma responsabilidade social que cedo ou tarde viria. Há aqueles que atribuem ao casamento uma possível mudança de vida por parte de um (ou ambos)!

Não concordo. Acho que até por conta disso que muito relacionamento por aí afunda: o excesso da responsabilidade, a cobrança que se tem em cima do termo "casado". Não poderia ser simplesmente duas pessoas que estão juntas de comum acordo? Não poderíamos deixá-las livres dessa cobrança para que o relacionamento possa fluir sem um termo a menos?

***

Enfim, breves motivos, dentre vários outros que ainda poderia discutir aqui, de como eu vejo na minha vida um casamento como parte desnecessária. Naturalmente, esta é uma opinião minha, Mas e você leitor, o que acha?

9 de set. de 2016

Setembro Amarelo: porque é importante sim estar aberto a ouvir qualquer pessoa

No mês de setembro, começa a campanha do Setembro Amarelo: para quem não sabe, é o mês que se desenvolve uma campanha conscientizadora contra o suicídio, além de também promover meios para combater o tabu cujo qual o tema está envolvido. Em 2016, o ponto alto da campanha se dará no dia 10/09, e o tema é abordado no mundo todo. No Brasil, desde veículos tradicionais de comunicação (Estadão e o Jornal do Brasil, por exemplo) a até times de futebol engajam-se no assunto.

Uma pessoa se mata no Brasil a cada 45 minutos; no mundo, uma pessoa tira a própria vida a cada 40 segundos. É muita coisa, incapaz de se passar desapercebido. Inclusive, esta semana um rapaz de 16 nos se matou aqui perto de casa, pulando do quarto andar de um prédio. Uma moça que passava próximo a ele ainda o escutou dizer, antes de vir a desfalecer no asfalto:

Diz pro meu pai e pra minha mãe me perdoarem, tá?

Mas este texto foi feito com um outro propósito. Por esses dias, uma imagem começou a rolar no Facebook. Achei-a muito pertinente: é esta a seguir:


A descrição que acompanhava o post da imagem era a seguinte:

#SetembroAmarelo
.
Esta campanha é de incentivo as pessoas procurarem ajuda de um profissional de Psicologia! [grifo meu]
Setembro Amarelo é um movimento mundial que objetiva conscientizar a população sobre a realidade do suicídio e mostrar que existe prevenção em mais de 90% dos casos. 
O suicídio é considerado um problema de saúde pública e mata 1 brasileiro a cada 45 minutos e 1 pessoa a cada 40 segundos em todo o mundo. 
O movimento Setembro Amarelo é estimulado mundialmente pelo IASP – Associação Internacional pela Prevenção do Suicídio.
Procure ajuda de um Profissional de Psicologia. [grifo meu]
http://www.crpsp.org/site/
http://cvv.org.br/

Achei a imagem muito pertinente e compartilhei. Não tarda, algumas pessoas começam a refutar a ideia, mandando um X de vermelho e criticando justamente o que grifei no texto citado acima.

Não sou psicólogo, embora muitos amigos insistem em dizer que deveria ter sido um. E nunca gostei do termo "conselhos", pois é muito fácil opinar sobre algo que você não está envolvido (sempre preferi falar sobre "o meu ponto de vista" sobre algo).

Mas de uma forma ou de outra, onde quero chegar: às vezes, um papo pode ser a diferença entre a vida e a morte de alguém. Podemos, mesmo sem uma formação formal, pelo menos incentivar uma pessoa com um quadro que pode vir a se tornar suicida a ter uma atitude um pouco mais positiva ou, no mínimo, criar coragem para ir a um profissional especializado.

Nunca serei capaz de substituir um bom profissional para esses casos, mas posso pelo menos, me manter aberto e interessado na saúde mental básica a alguém, indicando aqueles que por sua vez poderiam de fato ajudá-la. Ela precisa saber que é importante, que tem sim um papel neste mundo, e que mesmo que esteja em profunda tristeza, não significa que não há nada que possa fazer.

Sempre há alguma coisa a se fazer sim. E se para essa pessoa minha inbox for útil, assim será.

Quem nunca se sentiu sufocado, a fim de conversar sobre algo só para descarregar aquela coisa ruim? Para fazer isso, é certo que a pessoa confie na outra para fazê-lo.

Fique completamente atento a sinais que uma pessoa que pode vir a se suicidar revela. No entanto, nunca, nunca ignore-a ou faça-a achar que você não pode, pelo menos minimamente, contribuir para fazê-la se sentir útil e importante, necessária, que sua vida interrompida de forma abrupta não será boa para ninguém.

6 de ago. de 2016

Dicionário (im)Pessoal #4

Orgulho | s. m.

or·gu·lho 
(1ª pess. sing. pres. ind. de orgulhar)

Substantivo masculino
1. Manifestação do alto apreço ou conceito em que alguém se tem.
2. Soberba ridícula.
3. Brio.

Fonte da imagem

Definições do Dicionário (im)Pessoal:
1. Sentimento até certo ponto necessário e benéfico, mas facilmente torna-se corruptível e tóxico, corroendo relações e exacerbando propriedades inúteis;
2. Ego exagerado, facilmente ligado à ignorância, rancor e falsidade;
3. Incapacidade de se admitir com um defeito (que geralmente todos já sabem que se tem).
4. Ironicamente, falta de confiança em si próprio.

***
O Dicionário (im)Pessoal são conceitos de palavras corriqueiras mas que, ao contrário do livro tradicional, foge à regra por permitir interpretações diferentes por cada um que leia aquele termo. Fica a pergunta: o que a palavra da vez lhe traz de experiências, memórias ou sensações? Comente!

29 de jul. de 2016

Pensamentos Cotidianos

Estava em um bar hoje com alguns amigos quando uma mulher, em seus 30 anos mais ou menos, apareceu. Bonita e com um corpo dentro dos padrões "socialmente desejáveis", digamos assim. Mas ao invés de contemplá-la, em um estalo, mudei meu foco para reparar como o ambiente à sua volta reagiria com a presença dela.

Exceto por algumas atendentes, todos os presentes no local eram homens, com no mínimo também por volta de 30 anos, alguns uniformizados e indo/vindo do trabalho. Todos começaram a encará-la e reparar insistentemente nos dotes físicos da moça; eu notei isso e também vi que ela, apesar de se claramente notar os olhares todos recaírem sobre si, evitou qualquer tipo de contato visual, limitando-se apenas a interagir com os funcionários. Quando seu pedido chegou, ela o recolheu e foi embora.

Fiquei me perguntando, como em um exercício de empatia, quantos olhares, cantadas e outras banalidades deve ouvir todo dia. Não, não estava com "roupas provocantes" (o que também não dá direito de julgar ninguém), nem qualquer tipo de comportamento "provocativo".

Pensei na minha irmã, na minha mãe. Pensei na minha namorada e amigas,

Pensei sobre mim e minha postura para com algumas pessoas.

***

Momentos depois, um dos rapazes que estavam comigo à mesa disse:
"Namorar alguém tem que ser no máximo por dois anos; mais que isso enjoa e não compensa."
Estou em um relacionamento que vai fazer oito anos. Estou em um loop de enjoo eterno, então? Se eu me cansar, basta descartar? É mais fácil então adquirir uma coisa duvidosa mas nova do que consertar uma velha mas correta?

Novamente pensei, mas desta vez, sobre o comportamento das pessoas sobre ou para mim.

22 de jul. de 2016

Empatias e empregadas

Sabe qual é o problema das pessoas hoje? Falta de empatia.


Não, não é a porcaria de uma "escola sem partido" que vai salvar a educação de alguém - até porque, aos defensores dessa ideia bisonha, desafio-os a mostrar um sistema educacional apartidário e funcional em qualquer lugar do globo e que não seja envolto por um sistema político ditatorial. Pensar incomoda muita gente, correto?


Carecemos de falta de afeto, de empatia, de sensibilidade ao direito de ser do outro, de respeito às decisões alheias, de não apontar o dedo. Mas é hipocritamente melhor atribuir a educação (em todos os aspectos) à figura da escola, ao diploma, ao "mestre", ao "doutor", e esquecer que a formação mais elementar de todas vem de casa, do exemplo dos pais, do ensinamento do respeito, da dignidade como ser humano dentro de uma comunidade. É a típica hipocrisia social, do alívio e transporte da culpa de uma sociedade falida para a primeira coisa que se vem à cabeça. Vive-se dentro do entorpecimento de excessos e bipolaridades, onde só se pode ter uma única visão, e destoar dela é fraquejar seja lá com quem for.


Empatia: palavrinha simples e mágica até, servida acompanhada de respeito e abertura. De carinho, de afago, de abraço, de beijo, de um monte de coisa bonita e bacana, hoje todas largadas de canto.

Ler os depoimentos da página Eu Empregada Doméstica me engasgou. Tenho um épico exemplo de dignidade dentro de casa, e só de imaginar que alguma coisa parecida já possa ter acontecido com essa pessoa já me deixa sem ação, me faz sentir inútil. É por causa dessa pessoa que eu hoje não sou cego, que eu não tive problemas de garganta porque ela correu atrás, ela é quem não me deixou estacionar e me empurrou para frente, mesmo não tendo conseguido metade dos facilitadores que hoje eu tenho.


Empregado doméstico não é sinônimo de vergonha. Nunca foi.

Empatia, galera, empatia. 

14 de jul. de 2016

O encontro

O garoto estava ainda atordoado, ajoelhado, de frente à lápide do finado parente, olhava diretamente para o que estava escrito: o nome, data de nascimento e falecimento e a foto em preto e branco daquele homem que chegara ao fim de seus anos. Claramente o rapaz não aceitava a morte de tal senhor: de alguma forma, e somente agora, ele se deu conta de quão absoluto é o fim de algo que se ama.

Todos que foram ao enterro já tinham ido embora; haviam muitos rostos conhecidos, e outros nem tanto, e aqueles nada reconhecíveis. O entardecer trazia junto da sombra um vento frio, mostrando que o inverno ainda não terminara.

Por que ainda choras, rapaz? — uma voz estranha, quase cadavérica, surgiu próximo do garoto. Assustado, ele olha e vê um cidadão de meia-idade, trajando roupas finas, embora um pouco fora de moda, talvez. Tinha barba muito bem feita e cavanhaque pontudo, um bigote peculiar, cabelo e olhos negros feito carvão e um ar de ironia. O homem toca de leve o ombro do rapaz.

Cemetery Sundown
O garoto estranha um pouco: era impossível este homem ter chegado ali sem que ele visse, já que o túmulo fica em cima de uma colina, e o único caminho disponível era aquele cujo qual o rapaz estava de frente. Voltando a si, o ele comenta para o exótico homem:

— Porque perdi um parente muito querido. Todos ficam tristes quando perdem algo que gostam muito.

Ora, isso não ser novidade para ninguém — fala pacificamente o estranho, enquanto massageia os pelos do cavanhaque. — No entanto, sabes que a morte ser inevitável, então por que insistes em chorar?

O garoto fica maus confuso ainda, Quem diabos é esse cara que acaba de chegar e fica com esse papo agora? Não saberia ele respeitar o momento de dor alheia?

— Olha meu senhor, lidar com perdas é muito complicado. Estou em um momento difícil, e o senhor parece querer caçoar de mim... Respeite minha dor, por favor.

— Meu rapaz, não precisar ficar assim. Apenas acho engraçado vocês, que comemoram o nascer das coisas e se entristecem com desfazer delas, como se fossem absolutas. Tudo vem e vai. Não ser nada separado uma da outra; ambas fazer parte de um longo... processo.

— Quem é o senhor, para vir aqui me dizer isto? Conhecia meu parente?

O garoto estranha muito a fala do senhorio. É um pouco confusa, errada, com graves erros de concordância, mas passa uma firmeza sem igual. O estranho homem olha diretamente nos olhos do rapaz, solta um leve sorriso de canto de rosto e diz:

Eu conhecer seu parente, você, os que já se foram e os que virão, jovem. Eu vir aqui lembrar você de aproveitar o tempo que lhe resta, igualando o que se foi com que ainda fica. Vós perdestes muito de sua energia dedicando a coisas ruins e lembrar de coisas que já se foram, que não há nada mais o que fazer... Memórias ser coisas boas, mas podem lhe atrasar, ofuscar os olhos em virtude de tudo que a vida proporciona graças a uma finada sensação que tu insistes em ressuscitar. 

Lauren Hill Cemetery
"Lembre-se: você está aqui para viver. Para experimentar, arriscar, chorar, divertir, mas no fim, viver. O que há na morte é outra história, morra e descubra. Até chegar sua hora, ame, odeie, comece, termine, respire, inspire, brinque... Pois, pense: hoje subiste este morro para chegar até aqui, e haverá o dia cujo qual você nem de longe isso conseguirá, e depois desse dia, outro dia cujo qual será aqui repousado por muitas ou poucas pessoas. Você tens medo de roubar aquele beijo, pedir teu aumento no trabalho, de puxar papo com a rapariga... Pois não deveria, sabes? No fim, e apenas no fim, descobrirás que muito do que fizeste foi perda de tempo, e um outro punhado de coisas que deixastes para trás por medo de fazê-las lhe será tomado como um vazio. Vivas, meu rapaz, vivas. A cada aniversário, a cada ano, mais e mais estarei perto de ti e de surpresa tomarei o que é meu."

Assustado, o garoto olha para o túmulo do parente finado. Ao voltar o olhar, não vê mais ninguém. Teria sonhado? Não... Claramente não. Era real: o toque, a fala errada, o cheiro do tal homem... Não foi um alerta, e sim um conselho; e por mais misterioso que fora o encontro, o rapaz nãos sente medo.

Ele se levanta, limpa seus joelhos e desce pelo caminho entre covas abertas, jazigos e túmulos. A noite quase que chegara completamente. Mas pensando, na verdade, o raiar de tudo apenas começara a despontar.

8 de abr. de 2016

Dicionário (im)Pessoal #3

Respeito | s. m. | s. m. pl.

res·pei·to 
(latim respectus, -us, .ação de olhar para trás, .espetáculo, atenção)

Substantivo masculino
1. Sentimento que nos impede de fazer ou dizer coisas desagradáveis a alguém.
2. Apreço, consideração, deferência.
3. Acatamento, obediência, submissão.
4. Medo do que os outros podem pensar de nós. = RECEIO, TEMOR


Definições do Dicionário (im)Pessoal:
1. Ser capaz de ter empatia pela dor do outro, mesmo quando ainda não tiver tido a experiência de senti-la (o que ainda complica as coisas, porque a dor de um não remete ao outro diretamente);
2. Saber que a zoeira de fato não tem limites (e nunca terá [in]felizmente), mas tem hora, o que a diferencia do mau gosto propriamente dito;
3. Manter uma discussão civilizada dentro dos moldes aceitáveis e adultos, independentemente do grau de instrução dos envolvidos;
4. Admitir que o diferente de você, dos seus gostos, o que você veste ou calça, nada disso tem relevância sobre a integridade física e psicológica de alguém;
5. Admitir derrota, mesmo que ela soe como perda apenas para o nosso ego, que se recusa veemente em acreditar que é inabalável e dono da mais absoluta verdade.

***
O Dicionário (im)Pessoal são conceitos de palavras corriqueiras mas que, ao contrário do livro tradicional, foge à regra por permitir interpretações diferentes por cada um que leia aquele termo. Fica a pergunta: o que a palavra da vez lhe traz de experiências, memórias ou sensações? Comente!

25 de mar. de 2016

Remédios

Enquanto ia para o trabalho essa semana, vi duas pessoas de idade, ambos com aparentemente setenta anos, um homem e uma mulher, conversando sobre saúde e remédios. Aparentemente já eram conhecidos de longa data (mas não com um relacionamento), e caminhavam com a limitação comum da idade.

Eu passava próximo a eles, e escutei o seguinte diálogo:

— Eu parei de tomar meus remédios — diz o homem.
— Por quê?
— Quanto mais remédio eu tomava, mais fraco eu estava. Tomava um remédio para cuidar de uma coisa, piorava outra. Arrumei um que agora tem me feito bem melhor agora.
— Qual?
— Caipirinha.
— Mas você não estava podendo beber...
— Nem estou podendo mesmo. Mas azar.
— Faz isso não homem. Pode te dar problema aí...
— Ah, azar. Já estou velho demais para ficar dando dinheiro pra esse povo que só quer ver a gente doente e ganhar em cima. Arrumei uma pinguinha aí, uns limões e sal, e mando pra dentro na hora do almoço. Fico bem, relaxado, nem preciso exagerar. Até a dor na perna sarou. Minha filha não gosta, mas eu não estou nem aí, é só um pouquinho por dia. Tenho me sentido realmente bem mais disposto, tanto por pegar e fazer um negócio que muito tempo não tomava quanto pelas lembranças que isso me traz.
— Uai, vou tomar uma co'cê lá...
— Vamos lá, sô. 'Cê vai ver a diferença que é.

E assim fui para o trabalho, com a boca seca para tomar minha caipirinha do dia.

18 de mar. de 2016

Mandamentos de boa postura da internet

Sempre vemos por aí uma internet recheada de desinformação e ruídos. Principalmente em épocas de assuntos polêmicos, pessoas vociferam opiniões às vezes infundadas e impensadas rede afora, e isso pode ser perigoso, já que aquele argumento errôneo pode influenciar outros a cometerem o mesmo fatídico fracasso.

Portanto, segue alguns toques de boa convivência virtual, como forma a ajudar a todos a terem um lazer internético mais divertido e saudável:

1. Sempre pesquisarás

Antes de sair comentando qualquer coisa por aí, tenha certeza de que você sabe o mínimo suficiente daquele assunto. Isso ajuda a manter o debate saudável e, ao mesmo tempo, permite que você discuta de maneira inteligente com outras pessoas.

2. Lerás o outro lado

Mesmo que você tenha uma posição contrária a uma linha política, religiosa ou social, se informar de assuntos que você é contra a respeito ajuda a embasar seus argumentos e evitar ser pego de surpresa por questionamentos do outro lado. Não entenda como uma guerra, mas o atrito gerado por um bom debate tende a ser positivo até para aqueles que somente estão acompanhando-o, sem opinar em nada.

3. Não terás preguiça

Um erro gravíssimo é tentar nos informar apenas pelo título de alguma coisa. Manchetes podem ser extremamente tendenciosas e não demonstram desdobramentos que o texto completo possui — ou pelo menos deveria possuir. Deixe a preguiça de lado e se informe corretamente!

3. A teu ego dominarás

Fato: é mais comum do que pensamos a nossa falta de capacidade em aceitarmos que estamos errados ou, no mínimo, equivocados quando em uma discussão e, dessa forma, evitarmos receber qualquer crítica. Não faça isso. Aceite que o argumento do outro foi melhor naquele momento, e estude de forma a refutá-lo posteriormente com coesão e maturidade. Ninguém gosta de pirraça, e maus perdedores não são levados a sério em lugar algum.

4. Mentiras não serão semeadas

Cuidado ao sair compartilhando qualquer coisa só porque está na internet. Existem várias notícias falsas que são publicadas em sites duvidosos somente para fazer com que os mais desatentos cliquem nelas e gerar visualizações e monetização. Até mesmo grandes veículos de comunicação às vezes publicam textos equivocados ou tendenciosos.

Na dúvida, não publique.

5. Desconfiarás de cada ponto

Não é para ser paranoico, mas mesmo o mais idôneo meio de comunicação já cometeu gafes graves. Sempre leia fontes diferentes, e tente refletir por si só sobre o que leu. Dessa forma você cria independência e com o tempo, conseguirá filtrar melhor todas as minúcias escondidas dentro das mensagens.

6. Nunca comentará falácias

Não é necessário discutir muito sobre isso, melhor ver na prática: acesse o link www.papodehomem.com.br/falacias-logicas/ e leia a respeito. Aposto que você mesmo se surpreenderá do tanto de coisas falaciosas que executa durante suas discussões e não havia reparado.

7. Não alimentarás o troll

Trolls sempre vão existir e em vários casos, apenas são aqueles que desvirtuam toda uma boa discussão. Não caia nessa. Evite-os ou faça-os cair em seu próprio jogo.

8. Serás educado

Muitas vezes alguém perde a cabeça (principalmente em função do Quarto Mandamento) e começa a esbravejar xingamentos homofóbicos, xenofóbicos, sexistas... Cuidado para não entrar nisso. Mostre que você não precisa se rebaixar nesse ponto para levar a discussão adiante; não há necessidade de continuar um assunto quando alguém quer evitar qualquer diálogo coerente.


9. Cuidado com o que escreverás

Naturalmente, tudo aquilo que você escreve e publica pode ser interpretado de várias maneiras, de acordo com aquele que lê. Por isso, todo cuidado é pouco: muita dor de cabeça pode ser evitada se você ler e reler algo antes de confirmar o compartilhamento. Uma vez que a mensagem foi para a internet, você não tem ideia nenhuma de onde aquilo pode – e como – vai chegar.


10. Terás postura

Se publicar alguma coisa e se arrepender depois, aceite. Assuma que você se equivocou, mas hoje pensa diferente e que aquilo poderia ter sido reescrito de outra forma ou simplesmente não ter sido postado. Ser honesto é uma das maiores características impessoais do ser humano, e você estará sendo tanto consigo mesmo quanto para a comunidade virtual. Todos saem ganhando!

12 de mar. de 2016

Réquiem da dúvida

Cervejas e drinques eficientes,
garçom, alegre e tranquilo.
De mesa a mesa reconhecido,
esforçado era, sempre agradecido,
fala baixa, discreto e muito amigo.

(Porque assim tão próximo de Deus,
no tradicional cartão postal,
forçado deu seu último adeus?)

Mas a desgraça lhe rondava
da morte, não pôde se esconder.
Uma vez lhe tiraram o amor
diferente talvez, mas de valor
intolerância, com sangue a valer.

(Porque morrem tantos bons
se quem continua a viver semeia
dor e tristeza como dons?)

Da vida não se tem mais respeito
Mais uma vítima da covardia
Do ódio tolo, sozinho apanhava
Paus e socos, a vida lhe arrancava
E apesar das dores, ninguém ouvia.

(Porque  fazer sofrer tanto
aquele que de você não precisa
além de respeito e ponto?)

Um corpo frio no chão
depois de uma noite sem lua.
O sorriso não existe mais,
o segredo sombrio se faz,
na noite covarde da rua.


***
Ao mesmo tempo que experimento escrever em estilo de poesia, coisa que eu raríssimas vezes faço (e tomo iniciativa agora em função das aulas da universidade), gostaria de deixar aqui um pequeno registro de alguém que foi covardemente assassinado na madrugada desta sexta (11/03).

Esta poesia é para Adílio, um rapaz negro, gay e membro de religião africana — pessoa que já teve um namorado morto vítima de homofobia —, que foi espancado até a morte, após sair do trabalho e de forma terrivelmente covarde por socos e pauladas, cujo corpo foi encontrado por uma moradora de rua. Estranhamente, ninguém nas redondezas do acontecido ouviu algo suspeito...

Embora não fosse amigo próximo dele, várias vezes fui atendido de forma exemplar pelo próprio no bar onde trabalhava como garçom, no cartão postal aqui de São João del-Rei. Resta-me desejar um descanso confortável, e torcer para que alguma justiça seja feita.

5 de mar. de 2016

Porque um alienígena nunca visitaria nosso planeta

No dia primeiro de março de 2016, dois astronautas retornaram à terra depois de quase um ano no espaço. Ao chegar à Terra com uma nave de transporte soviética, percebeu-se um pequeno áudio nos arquivos de gravação, com uma mensagem decodificada desta forma:

“Olá terráqueos. Vemos em vocês uma imensa curiosidade em saber de nossa existência, se realmente somos criaturas cinzas, baixas e de olhos grandes, se gostamos ou não das mesmas coisas; infelizmente, tão cedo ficarão à sombra da dúvida, pois quase não temos mais interesse em fazer qualquer contato com seu povo. Em suma: não vemos motivos quaisquer para nos revelar e interagir com seu planeta.

Até gostaríamos mesmo de poder unir nossos conhecimentos em um só, e formaríamos uma comunidade intergaláctica avançada em todos os sentidos. Mas, observando-os, chegamos à conclusão que vocês mal gostam do seu chamado Planeta Azul, pois não têm o mínimo de respeito com este lugar que têm como lar. Vocês destroem tudo em prol de uma coisa tão subjetiva que denominam como “dinheiro”, desfazem o equilíbrio natural e se vangloriam disso, matam seu semelhante – mesmo que ele tenha patas em vez de pés – como se fosse apenas mais um. Vocês precisam entender que nada dura para sempre, e mesmo vocês um dia saberão, às duras penas, que trocar o azul de suas águas e o verde das matas pelos tons frios de seus ‘dinheiros’ não terá valido a pena.

Pior: vocês perdem tempo menosprezando suas mulheres, aquelas que fazem o mais nobre trabalho de todos, que é continuar sua espécie. Desdenham de sua luta por direitos igualitários entre si, e as têm como posse e objeto qualquer de desejos temporários. Zombam de suas inconstâncias, e depositam nelas culpas que não tiveram. Tolos.

Vocês preferiram se vender a viver. Entregam suas almas a obrigações enfadonhas, e aguardam como se por um milagre para que o amanhã seja diferente – e nunca é. Claro, porque nem de longe, muitos de vocês não são resultado daquilo que sonham.


Digam-nos: quando foi que pararam para ver a beleza do desabrochar de uma flor após uma chuva? Já tem muito tempo que fecharam os olhos e se deliciaram em ouvir sua música preferida, certo? Cada um de vocês teria certeza em nos responder qual seu maior prazer na vida? Quando foi a última vez que fizeram desenhos estranhos com nuvens em um céu azul? Sabem nos dizer de qual animal gostam mais (nosso preferido são as corujas!)? Possuem inspirações para escrever muito mais, poderiam incentivar a educação do seu povo...

Ficamos tristes quando vemos vocês trocarem suas vidas reais pelas virtuais, como se tivessem um escudo para preservar suas intimidades. Quando são impacientes com pequenas coisas que poderiam aprimorar sua percepção ou aumentar seu contato, como a demora de um ônibus a chegar, as pessoas que tocam músicas que você não goste, vocês perdem uma boa dose de empatia e conhecimento do outro. Ficamos felizes quando discutem calorosamente mas conseguem resolver-se valendo da razão e sem brigas. Quando se questionam “quem é você” em busca de um aperfeiçoamento pessoal, quando fazem coisas loucas tipo pular de paraquedas, quando a essência da liberdade vence e se faz respeitada, quando, dentro do bom senso, vivem como se fosse seu último dia, como se o mundo fosse acabar amanhã.

Enfim, queremos que saibam que não somos prepotentes ou de fato superiores. Apenas temos certeza que muitos dos seus problemas são facilmente resolvidos com um diálogo sensato e organizado. Só isso. Pensem e façam sua parte. Porque infelizmente, para nós aqui, quando poderíamos ter feito tudo isso, não fizemos, e agora pagamos o preço perdendo nosso lugar da mesma forma que vocês estão fazendo com o seu e vagueamos, como parasitas, de um cosmo a outro em busca de esperança, que diminui a cada estrela que cruzamos, a cada planeta deixado para trás.

Não repitam nossos erros.”

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Texto originalmente escrito para a disciplina de Escrita e Criatividade do curso de Letras/UFSJ, cuja premissa tinha como base pegar frases aleatórias e juntá-las de forma conexa.

27 de fev. de 2016

Reações (des)Conectadas?

Independent

Eu poderia escrever muita coisa sobre essa foto. Muita mesmo, o tanto de informação que a imagem passa é fora de série. Mas eu gostaria apenas de salientar, no meu ponto de vista, um futuro que eu tenho medo, que eu acho que estamos caminhando para ele cada vez mais afoitos, sem olhar para trás ou sequer pensar onde vamos chegar.

Entenda-se: estamos conectando cada vez mais pessoas, mas não relações. Um like vale cada vez mais que um cumprimento, um meme ou emoji substituem uma conversação, fazem-se entender por si só; eu mesmo costumo muito responder postagens usando memes. Estamos substituindo gradual e imperceptivelmente toda a deliciosa tensão gerada de um encontro real por um smiley genérico, um reforço de egos binário e uma visibilidade que infla a necessidade de participar, não ficando para trás dentre aqueles que se conhece.

Você pode substituir um abraço por uma curtida, por exemplo...

Estou sendo realista, mas não pessimista. Sério. vejo que estávamos de fato nos direcionando para que esse caminho fosse tomado, era um progresso natural até. Talvez não tão rápido, mas ainda assim nada surpreendente, mas a pergunta ainda é: vamos nos tornar somente um número, uma qualificação binária em uma rede "social"?

5 de jan. de 2016

Encoraje um artista


 
 
 



4 de jan. de 2016

[MICROCONTO] O Homem do Chapéu Negro

Demorou muitas luas, mas finalmente o Homem de Chapéu Negro chegara ao velho moinho. Envolto sob uma noite escura e brumosa no charco lodoso, pútrido e cercado de árvores secas e anormalmente retorcidas, é nítido que nem mesmo a neve ousa tocar o solo daquele lugar: tudo que restou de uma antiga vila agora se resumia somente, e tão somente, na construção decrépita de pedras negras e irregulares que suavam corrupção a olho nu em uma elevação no terreno cuja trilha que leva até a porta de entrada o tempo quase apagou por completo. O cheiro de morte, os corvos curiosos com o visitante, a água podre que formava uma lama pastosa e escura que sujavam quase aos joelhos do caçador, os pedaços de gente apodrecendo junto a tufos de grama e vermes do tamanho de um dedo polegar não deixavam dúvidas que ele alcançou o covil da bruxa.

Mas não era de uma simples feiticeira que o Homem de Chapéu Negro estava atrás: a criatura que ele caçava era asquerosa, grande, embora andasse arqueada e com sua coluna fazendo quase noventa graus. Ela usava um tipo de magia desconhecida, atraindo as pessoas para próximo de seu covil, e uma vez que as alcançasse, arrancava seus olhos e fazia coleção deles, e comia outras partes do corpo. As vítimas preferidas dessas bruxas eram as grávidas e as crianças, e seus ossos virariam cálices e ferramentas de bruxaria espectral.

A única fonte de luz vinha da cintilante tocha mística que o Homem de Chapéu Negro carregava, uma chama que permitia a iluminação mesmo no caso de escuridões de origem profana; era uma lembrança que o fogo da vida existe mesmo naquele cenário horrendo. Pela última vez, ele checa seu rifle, um Bridesburg Model 1861, arma de tiro único mas confiável, precisa e carregada com sua bala de prata especialmente feita para atingir caças que são resistentes a tiros convencionais. Também confere suas Colt’s, munição para as mesmas e suas bombas alquímicas, previamente preparadas para diminuir o poder mágico da profanação prestes a combater.


Sua melhor arma, no entanto, era Aurora, um sabre finamente fabricado e com uma lâmina tão brilhante quanto à luz da lua, tão bem límpida que mal parecia que ela já tinha se sujado como sangue e vísceras de tantas criaturas profanas. Ninguém sabe o porquê da sua espada ser chamada assim, mas não havia também aquele com coragem para perguntar. O Homem do Chapéu Negro não respondia nada que não fosse relacionado a sua próxima caça ou recompensa, e todos tinham medo dele, onde quer que fosse, mesmo se fosse chamado para o pior dos casos.

Tudo perfeito, exceto por um detalhe: embora não carregue a petulância dos caçadores novatos, sua esperança de volta era diminuta. Influência da criatura? Talvez... Mas como caçador, e portador do Chapéu Negro, a esperança é algo que definitivamente não foi feita para ele, e sim para outros que dependem do sucesso da sua caça. É perda de tempo acreditar que ele possa sair vivo de qualquer missão, enfim; caçadores são feitos para isso, e de um jeito ou de outro, morrer pelas garras, presas ou feitiços, considerando ainda uma morte rápida, é o melhor destino que qualquer Homem de Chapéu Negro pode esperar.

Ele beija sua espada com toda a ternura possível, e salta em direção a parte baixa, onde há muito havia o curso de um vívido riacho hoje apenas lembra um fino curso de água fedorenta. Ele vai em direção ao caminho de entrada do velho moinho e quanto mais se aproxima da entrada, mais é possível escutar o estalar da madeira de dentro da construção, o gotejar da infiltração cair como tiques de relógio, assim como suas hélices que como em uma sobrevida tentam se mover.

Será uma longa noite...