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5 de dez. de 2014

No lixo

Jonas certamente estava na pior. De todas as brigas que se metera, esta sem dúvida foi a mais grave. Largado na sarjeta perto da sua casa, sentia as costelas doendo e tinha um grave corte na testa, que sangrava até o olho esquerdo lhe tirando toda a visão deste lado.  Tentou por duas ou três vezes se apoiar nas paredes imundas para ficar de pé, e quando finalmente conseguiu, sentiu dores na sua genitália. Não queria se lembrar do que aconteceu, embora invariavelmente recordasse cada frame.

Uma das últimas coisas que ainda poderia chamar de sua - seu próprio corpo -, já não lhe pertencia mais.

Tinha vontade de chorar e não podia. Quem ia acreditar na sua versão? Bem, um ou outro amigo ia dizer para que tomasse uma providência ou procurasse a polícia, mas no fim das contas, terminaria tudo do mesmo jeito. E pior: ao chegar em casa apanharia de novo, ou na melhor das hipóteses, sofreria uma agressão surpresa quando fosse trabalhar ou estudar, quando achasse que já estava se esquecendo de tudo que passara e as coisas voltando aos eixos.

O rapaz tinha medo de tomar uma decisão sobre o que fazer. Na verdade, ele nem se lembra de quando foi a última vez que pudera tomar uma por si só: era sempre julgado, sempre qualificado moralmente pelos mais fúteis motivos. O relacionamento em que estava no momento foi o pior deles nesse ponto, porque não fazia nada, nada mesmo, sem o consentimento do outro lado.

A violência sempre fora uma constante em sua vida. Quando pequeno, era obrigado a se portar de acordo com o que queriam, e cresceu com várias dúvidas sobre si mesmo, sem que tivesse confiança sequer em procurar saná-las. Foi na internet que conseguiu algumas respostas, mas já era meio tarde: viu que amigos e colegas se portavam diferente do jeito dele e às vezes eram até mais livres, embora sofressem também uma carga de repreensão explícita e eram vistos como escandalosos pelas outras pessoas.

Jonas às vezes até tenta lutar contra isso tudo, mas nada dura mais que alguns dias. Até porque tudo que ele sofre não é só dentro de casa: é normalmente menosprezado no trabalho, no trânsito e até quando precisa pegar um metrô ou um ônibus.

As pessoas pensam que violência é dar um tapa na cara, um tiro, assaltar, sei lá. Mas no fim das contas, violência é você deixar de ser si mesmo, certo? Ou então, deixar de contar para aquele carinha que ele lhe deu troco a mais, ou furar uma fila, ou ainda ficar com um produto que chegou em sua casa por engano...

Mas fazer o quê, era um trapo humano, com o orgulho em frangalhos e a humilhação marcada na pele. O resto é resto: é se arrastar até em casa e torcer para que amanhã as dores estejam menos latejantes para poder ir trabalhar amanhã.

A vontade de chorar ainda não passara.


- Demorou, Jonas - ouve-se o som de uma lata de cerveja sendo aberta.

O som da TV quebra o silêncio do local.

- Desculpa meu bem, estive...estive m-me recompondo.
- Será que não foi encontrar alguma colega sua?
- C-claro que não... Você está com meu celular inclusive...
- E quem garante que você não pode fazer nada sem celular?
- M-mas eu juro, não fiz nada... E-estava onde você me... Me deixou agora a pouco.
- Você está horrível. Vá lavar essa cara e se arrumar.
- T-tá bom.
- Você é meu namorado, e deve se portar como tal. O que os outros vão pensar de você se ficarem vendo conversando com outra mulher à noite por aí?
- N-não vão gostar...
- Certamente, e eu menos. Meu bem... Você sabe que eu te amo e me preocupo com você... Às vezes passo dos limites, admito... Mas é para o seu bem.
- Sim, eu sei...
- Pois é. Desculpa por ter agido assim... E ter lhe acertado tão forte.
- T-tudo bem.

O rapaz sobe e vai até o quarto, de olhos marejados. Olhando-se no espelho do banheiro, ele vê seus machucados e entende que é fadado a viver assim. Se sente um lixo total, mas alguma coisa lhe faz ir pra frente. Talvez, Deus...

- É a mulher que eu amo... Eu acho. E como ela mesmo disse, se eu largá-la não vou encontrar mais ninguém...


***
Achou um pouco estranho esse texto? Veja só: de acordo com um estudo que saiu essa semana, 68% dos jovens brasileiros de idade entre 16 e 24 anos acreditam que mulheres não deveriam ir para a cama no primeiro encontro, 76% criticam o fato delas terem vários ficantes, 48% acham errado dela sair sem a companhia do namorado ou ficante, sem contar a grande parcela delas que tiveram de desfazer amizade ou tiveram sua privacidade violada por conta de um namorado ou ficante.

Ou seja: a pesquisa mostra que o jovem brasileiro reconhece que o machismo existe, mas ele pouco ou nada faz para combatê-lo. E pior, se acha no direito de tomar para si a liberdade do outro, mais especificamente, da mulher. Ciúmes? Antes fosse...

E ainda tive que acompanhar nesses dias,
Em pleno 2015.

Não, não sou um militante feminista, nunca fui. Na verdade, na minha opinião, a grande maioria dos movimentos feministas hoje estão completamente descaracterizados, lutando por coisas que mais parecem com caprichos pessoais do que de fato uma busca pela igualdade de gênero e gerando coitadismo. São necessários? Claro, mas gerar incômodo colocando crucifixos na vagina e quebrando imagens sacras por exemplo não ajudam em nada a validar a integridade da causa. Mas isso é assunto para outro post.

Mas sou militante do respeito independente de gênero, orientação sexual ou qualquer coisa que preze a liberdade do outro. Milito pelo direito da minha mãe, minha irmã, minha namorada, minhas amigas, enfim, das meninas e mulheres poderem andar na rua sem terem que temer se serão atacadas verbal ou fisicamente, sem serem julgadas por um short ou vestido ("mas você está pedindo!") ou mal faladas simplesmente por terem gostos diferenciados da maioria.

E não escrevo isso tudo direcionando a homens: também quero que as próprias mulheres que ao mesmo tempo são vítimas e algozes dessas afirmações infelizes, dentre muitas outras, entendam que possam ser livres de dogmas e passem a ser capazes de agir do jeito que melhor lhes convier.

Não adianta descobrirmos a cura da AIDS se a gente julga nossa vizinha solteira porque ela gosta de sair e ficar com vários caras, enquanto quando um homem faz o mesmo ninguém não está nem aí. Também faz pouca diferença irmos ao espaço se a roupa que alguém usa continua definindo o que ela é - mesmo sem conhecer sua usuária. O problema mundial com as drogas me parece peixe pequeno quando uma mulher desperta ojeriza simplesmente por ter uma vida sexual livre.

Tem horas, que sinceramente, acho que a doença do mundo realmente somos nós mesmos.

1 comentários:

Unknown disse...

Muito bom! Como sempre dizem, nós olhamos sempre para o próprio umbigo. Pouco ligamos para o próximo, pouco queremos saber dele. Estamos no ápice da mudança entre a geração machista, nossos pais, e a igualdade. Diferentemente do que algumas pessoas querem fazer, que é trocar uma sociedade opressora, machista, por outra, feminista. Vamos brindar a igualdade, somos iguais, sempre fomos, só não nos damos trabalho de assumir, nem de querer isso.

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