Postagens

29 de jun. de 2012

A menina da mochila amarela

Todos os dias, quando o sol ainda espreguiçava no horizonte, lá estava ele, na sacada do seu quarto no segundo andar da residência, determinado, apenas esperando. Tinha um olhar quieto, paciente, sem nenhuma carga de pressa: estava aqui apenas para poder observar seu objeto de desejo; mas não uma cobiça ou ambição malévola, mas sim apenas uma admiração cuja qual era incapaz de descrever com palavras. Para ele, algumas palavras eram difíceis demais.

Na frente de sua casa passava uma avenida. Ela era longa e cortada paralelamente pelo sentido de mão e contra-mão por uma passarela feita de paralelepípedos nos mais variados tons de cinza. Essa passagem, era adornada em seu centro por um longo canteiro, coberto de uma bonita grama verdejante e alguns pequenos coqueirinhos, arbustos e pingo d'ouro. Esse caminho era usado pelas pessoas que acordavam cedo para o começo de seu dia e preferiam usar seus próprios pés para produzir alguma coisa: algumas buscavam uma boa saúde com a prática da caminhada, outras estavam indo para o trabalho, ou aquelas que ainda procuravam que destino iam chegar, em dúvida se escolhiam essa ou aquela esquina.

Mas ele, todo santo dia, ficava ali apenas para esperá-la passar. Ela, seu tesouro intocável, seu troféu inalcançável, seu sonho distante e impedido por uma mísera rua asfaltada e com os carros que desafiavam o alvorecer do dia. Tem gente que o achava louco: acordar tão cedo simplesmente para ir para a varanda e olhar para a rua... Mesmo no inverno tão frio como o desse ano...

Mas o que o esquentava era seu coração mesmo era poder vê-la, por poucos segundos, passando em frente à sua casa. Ela, e somente ela, era capaz de deixá-lo feliz, com seu jeito calmo de andar, seu sorriso bonito igual às estrelas que via à noite (ele gostava de ver estrelas com um simples telescópio ganhado de seu falecido pai), e seu olhar cor de mel, tão doce e tão curativo quanto. Isso o restaurava lentamente, isso o fortalecia. Fazia bem.

Ela tinha os cabelos castanhos, longos, que cobriam a parte superior da sua mochila. Era alta, bem mais alta que ele, mas o que importa? Era ainda uma menina, estava no ginasial, mas com certeza tinha um perfeito corpo de mulher. Ele não pensava nisso com luxúria, era inocente demais para isso; apenas gostava de admirar seu amor que caminha, o anjo sem asas, a menina com as bochechas fustigadas pelo frito matinal, o nariz rosado... E as sardas. As sardas! Elas eram discretas, mas como fossem uma pitada de charme, um retoque, um tom.

Os olhos dele brilhavam quando ela passava. Seu coração acelerava. Ele se sentia... vivo. E gostava de adivinhar o que ela levava naquela mochila. Cadernos e livros só? Não... Talvez uma caneta com aquele cheirinho de chiclé... Uma agenda? Cartas?

Cartas.

Dele. Do outro. Com certeza.

Então bateu a sua amiga angústia. Antes doía mais, agora era só um incômodo temporário, já estava acostumado em passar os dias nessa platônica existência. O Outro era o namorado, aquele que a beija, abraça e a esquenta até à escola.

Ele não sentia raiva. Apenas sentia a dor de amar alguém sem saber o que é amar, mas sabia sentir o amor, sem precisar de letras para defini-lo. Queria poder andar, atravessar a rua e chegar antes do Outro, mas era atraiçoado por si mesmo.

E nem pensava em traição... era simples demais para pensar nisso.

***

Os dias foram passando, e foi ficando cada vez mais difícil ir da cama à janela. Mas ele insistia, mesmo que todos na sua casa resmungavam que não podia mais fazer isso. Sua mãe ficava brava com ele, seu padastro dizia que era ele incapaz de entender. E quando ele ia na escola, junto a outros como ele, desenhava, de forma desajeitada mas sincera, uma nuvem negra, triste, que ocupava tudo e só trazia tudo de ruim, enumerando "papai, mamãe, irmão...". Mas só o desenho dela usava as cores mais bonitas do seu estojo, sempre o amarelo.

Ele adotou o amarelo como sua cor preferida.

***

Neste dia, em especial, ele quase não conseguira sair da cama. Os braços estavam fracos, a escuridão no quarto lhe roubava a vida. Mas juntando toda sua força, ele fora com suas pernas circulares à janela novamente.

Lá vinha ela, com sua destacada mochila às costas. Linda, como sempre.

E radiante ele ficou quando viu que ela parou, mesmo do outro lado da rua, na frente da sua casa. Exatamente, na reta da sua sacada. Ele mal conseguira piscar de tão feliz. Não queria perder nada.

Então, como de súbito, ela olhou de volta. Para ele. Para os olhos dele, para o coração, para a alma, para tudo... E sorriu, sincera, com o sol dourando seu cabelo, tornando sua mochila visível das estrelas, tirando a mecha de cabelo do rosto e deixando-o livre e limpo. A visão mais linda que ele poderia ver, a que ele era capaz de ter, e a mais importante que seus olhos doentes poderiam checar.

E então ela olha para o lado e o Outro se aproxima. Como sempre, a abraça e seguem avenida adentro, seguindo pela calçada cravejada de pedras até o seu destino desconhecido.

E ele, feliz como uma criança, se ajeita na cadeira, fecha os olhos e sonha, sorrindo de orelha a orelha com o prêmio que finalmente conseguira receber.

E aos poucos ele cai em um merecido sono, que há muito tempo desejava. Aquele sono libertador, que não despertará nunca mais.